De facto nem sei qual o título da crónica. Vivi momentos intensos neste Natal, na cidade de Luanda, onde pela primeira vez na minha vida fui confrontado com a realidade de não haver comida numa casa onde estive.

Na verdade o choque de consciência é totalmente diferente do que ouvimos na televisão, ou até de um amigo ou familiar que tenha assistido a este drama.
Como relatar algo que perturba qualquer senso comum, embora saibamos que existe em tanto lado deste mundo?
Entendi escrever uma história, que talvez elucide o que parte da juventude de Luanda anda a viver. Como se diz nos filmes é apenas baseada em factos reais, mas a ficção talvez seja a mensagem de esperança que todos e todas nós queremos…
Ele achava que não a merecia
Ela vinha no táxi, embalada pela monotonia dos buracos no pavimento. Olhava para o vai e vem das cabeças dos outros passageiros, sentindo a ressaca da conversa. Estiveram sozinhos naquela tarde. Mas ele não a queria. Não porque ela não fosse o sonho de qualquer homem, ou até de uma grande amiga presente nos momentos mais difíceis.
Simplesmente ele achava que não a merecia. Vivia da caridade da família, de algum dinheiro que conseguia dos biscates que ia arranjando como jornalista. Como poderia pensar em ter família? Estava fora do seu pensamento em viver na dependência da mulher, por muito bem sucedida que fosse, e por muito que ela o quisesse.
Ela argumentava que o amor nada tinha que ver com o dinheiro. Hoje é ele que passa mal, mas amanhã até pode ser o contrário.
«Talvez no início até corresse bem, mas sabes como são as famílias, que decidem por nós e acabam por te pressionar. Foge disso rapariga!»
Nem mesmo tendo invocado a sua Fé, como crente, acreditando que teria o apoio divino, o convenceu.
O táxi parava e arrancava agitando-lhe a amargura. O rodopio da saída e entrada de passageiros quebrava-lhe o pensamento. Naquela mistura de confusão pressente algo.
A arca frigorífica estava aberta. E na cozinha não reparou em vestígios de comida. Normalmente havia massa e arroz em garrafas de água aproveitadas, bem fechadas por causa da bicharada.
A afronta de pensar que ele estaria com fome deixou-a muito preocupada. Liga-lhe. Como sempre, ele nunca a queria preocupar. Estava tudo bem. De facto a arca estava avariada, mas restava ainda um pouco de massa.
Ela insistiu. Não se sentia convencida. «Que massa?»
O vazio do estômago, da arca, da despensa torna qualquer humano sensato numa queda de outro «vazio». Que fazer? Como ajudar?
A sua teimosia ainda a deixou mais furiosa. Ela estava certa que o vazio rodeava aquela casa.
Pede ao motorista para parar junto de uma cantina. Com os seus magros braços compra o que pode. Saiu carregada com os sacos que conseguia levar, cerrando os olhos do peso.
Ligou-lhe novamente. A noite apareceu e o local não era de todo seguro.
Ele insistia que estava bem. Foi mesmo necessário que ela salientasse que estava numa zona pouco segura, carregada de sacos com comida, para o demover.
O tempo passava, passava e nada. Esperou uma eternidade. Até parecia de propósito. A sua cabeça tão equilibrada e sensata transpirava de raiva.
Finalmente chega.
Vinha a pé.
O vazio da carteira não lhe chegava para apanhar um táxi!
Ela acabou por o abraçar!
E ele beijou-a!
Luanda, 24 de Dezembro de 2021
:: ::
«No trilho das minhas memórias», crónica de António José Alçada
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Março de 2018.)
:: ::
Leave a Reply