Naquele dia, diz o calendário que era Janeiro de 1955, eu acho que já foi há algum tempo, mas não há assim tanto tempo que tivesse dado para esquecer.
Bem, nesse dia, assumei à porta da rua, no cimo do balcão. O caldeiro da água tinha uma placa de vidro. De cada telha pendia um caramelo longo, longo… A alguns deles, até conseguia tocar-lhes com as minhas mãos.
Desci as escaleiras com cuidado para não deslizar por ali abaixo. Os cristais de geada, sob as minhas botinhas de borracha, pareciam teclas dum piano com música suave e linda. No curral, tudo estava coberto de vidro e com as primeiras gotículas que haviam derretido. Como eu estava feliz enfiada no meu sobretudo azul de fazenda de lã quentinha, touca na cabeça e cachecol enrolado no pescoço!
A minha alegria caiu por terra, quando uma pequerrucha cigana chegou ao nosso portão, pés descalços, inchados e vermelhos, saia suja e rota até aos tornozelos, um xale feito dum lenço da cabeça colorido e rameado. Vinha de cafeteira nas mãos, enegrecida pelo fumo do lume, pedir por amor de Deus uma pinguinha de água quente, porque não conseguiam acender o lume e os irmãozinhos choravam com fome e frio.
Meu tio tinha acabado de ordenhar a Tourina que dava sempre um grande caldeiro de leite. Disse à minha tia que, nesse dia, não seria preciso fazer o queijo. Dependurou o caldeiro das cadeias e deixou o leite a ferver enquanto apanhou uns galhos secos e uns cavacos grossos que entregou a um garoto mais crescidinho que acompanhara a irmã e se escondia atrás do muro. Depois, ele mesmo fez questão de ir com a minha tia levar o leite a ferver ao acampamento montado a menos de cem metros da nossa porta.
A gratidão reflectida nos dez ou doze pares de olhinhos que nos sorriram encheram a minha alma de felicidade até hoje.
Os pais e avós daquela trupe agradeceram, pediram a Deus bênçãos e mais bênçãos, mas eu não os ouvia. Apenas conseguia olhar para aqueles corpos famintos e enregelados que no fim de vinte e quatro horas tinham de procurar outro poiso e outro aconchego.
No dia seguinte, o terreiro estava vazio. Apenas restava o negrume dum lume mal varrido e apagado.
Tinham aberto o trinco do portão do curral e deixado três cadeiras de buinho ainda fresco, acabadinhas de fazer. Uma era pequenina… era para mim.
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«Gentes e lugares do meu antanho», crónica de Georgina Ferro
(Cronista no Capeia Arraiana desde Novembro de 2020)
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Uma bela lição de tratamento humano e o agradecimento de quem não tem nada! Obrigado Amiga