Fito-a na sua cadeira de rodas, cabelo de neve tal como o seu nome, Maria das Neves. Olhar vago num sorriso que lhe ficou do seu jeito de viver. Está aqui, mas longe… longe… Talvez em algum dos contos que me ia contando e recontando à lareira.

Eram histórias de uma ternura singular. Falavam do tal «Menino» com poderes divinos que vinha viver para junto das outras crianças que faziam as suas travessuras e tinham alegrias e tristezas, como os meninos da minha idade.
Que ternura, fantasia e candura, ela punha nos seus relatos sobre «O Menino Deus».
Aquela magia entrava em mim e conferia poder à minha imaginação.
– Lembra-se, avozinha, daquele conto da menina que queria ir embora do Mundo?… – Abre mais os olhos no vazio que lhe vai dentro.
Tentei ver o que ela tinha tirado do seu olhar profundo, que eu conhecera.
De repente, os seus contos de antanho, passaram dentro de mim. E lembrei aquele do menino que tinha fome mas não comia porque queria guardar a comida para a sua irmãzinha; e outro…e mais outro… Mas, o da morada para a Felicidade, tenho de contar para vós:
Na aldeia havia o que fazia falta para se viver feliz. Havia pessoas com dons para fazerem tudo o que era necessário para que a Felicidade lá morasse: professores, crianças, pais, avós, médico e curandeiro, enfermeiros, cuidadores, sapateiros, costureiras, lenhadores, cozinheiras, velhinhos… havia animais que eram a alegria da terra tal qual as crianças. O que é certo é que a Felicidade não vinha…
Um dia, lá na aldeia apareceu um menino. Vinha com umas roupinhas como as nossas, porém, já demasiado usadas para a sua idade. Também vinha descalço, tal como quase todos nós. Tinha o sorriso mais bonito que possam imaginar! Todos acorreram a falar-lhe, queriam saber quem era, de onde vinha, quem cuidava dele, onde iria dormir…
O seu sorriso cada vez era mais atraente e belo!… Sem se darem conta, todos os habitantes da aldeia o rodeavam: O professor era agora seu aluno; o médico seu paciente; todos estavam ali, como se não houvesse outro lugar na aldeia mais confortável..
Esse menino dizia:
– Venho preparar a morada para a Felicidade. Quem me quer ajudar?
A resposta foi um coro: «Eeuuuuu!»
Então distribuiu tarefas:
– Vós, as crianças, ides ajudar os adultos e aprender o que eles vos ensinarem; Tendes de manter a alegria da aldeia com os vossos sorrisos; O professor seguir-vos-á para vos orientar nas aprendizagens; Os camponeses irão lavrar, semear, regar, colher; Todos irão ajudar naquilo que souberem e puderem. Como há pouca lenha, juntem-na e faremos um grande lume num só lugar, onde teremos calor, companhia e pão.
Assim fizeram!
Ouviam-se lindas cantigas que enchiam o ar de sons maravilhosos, mais belos que as lindas sinfonias escutadas nos palácios reais.
Todos tinham trabalho: Uns desfolhavam as maçarocas do milho, outros desgranavam os carolos ou catavam os cornachos do centeio; os carpinteiros faziam as mobílias necessárias e iam criando peças de arte para embelezar e servir; os ferreiros tratavam da forja e ferravam os animais; As curandeiras faziam as suas mezinhas para todos estarem bem dispostos; As senhoras fiavam, faziam as refeições, tricotavam agasalhos para quem precisasse e falavam umas com as outras das coisas lindas da vida!
Os dias de sol eram gozados na lavrada, na escola, no largo da aldeia… Havia malhadas, magustos, vindimas, bailes, teatros, saltimbancos, cantigas de roda, jogo do mocho e das chinas, lavagem da roupa na ribeira…
Os dias de chuva, granizo ou neve, eram especiais:
Um velhinho divertia-os, com sombras chinesas à luz duma débil candeia, que ao passar pelas suas mãos, fazia projectar num lençol branco;
Outras vezes jogavam aqueles jogos tradicionais de há muito;
Contavam-se histórias, adivinhas, anedotas;
Havia colo para os mais pequeninos e carinhos para os mais idosos;
As crianças brincavam com os seus animais;
– E quando vai chegar a Felicidade, Menino? – Perguntaram quando acharam que tinham uma morada acolhedora.
– Ela já mora convosco, ainda não deram conta?! – Retorquiu com doçura, o Menino.
Agora dou-me conta da lareira apagada, sem sapatinhos, sem a avozinha de cabelo de neve. Sem contos de Natal para escutar, mas com mais de cem para vos contar!
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«Gentes e lugares do meu antanho», crónica de Georgina Ferro
(Cronista no Capeia Arraiana desde Novembro de 2020)
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