Chipre é uma ilha com uma história movimentada intimamente ligada não apenas à história da Grécia, mas também da Turquia e do Reino Unido que ainda hoje a partilham com os cipriotas. Esta história é em geral mal conhecida pelo grande público.

Com um território de 9 251 km2 e uma população ligeiramente superior a um milhão de habitantes, Chipre tornou-se independente em 1960 e, desde 2004, faz parte da União Europeia (UE). Mas continua a ser uma ilha dividida e alvo de cobiças e de disputas.
De facto, desde a Antiguidade que a ilha de Chipre foi objeto da cobiça de muitos povos e civilizações: assírios, persas, povos helénicos, macedónios, egípcios, romanos, francos do tempo das cruzadas, bizantinos, venezianos, otomanos, e, mais recentemente (séculos XIX e XX), britânicos, gregos e turcos.
Situada na parte mais oriental do Mediterrâneo, a 69 km da Turquia e a 105 km da Síria, a ilha encontra-se dividida em duas zonas geográficas: cerca de 800.000 cipriotas vivem na parte meridional da ilha (cerca de 61% do território) controlada pelo governo cipriota grego sediado em Nicósia. Os restantes 210.000 habitam na «zona turca» (39% do território), na parte setentrional de Chipre sob o controlo de uma «administração» não reconhecida pelo governo de Nicósia. Esta divisão não impede, porém, Chipre de ser, como atrás se disse, um Estado-Membro da UE: «de jure» toda a ilha, embora, «de facto», apenas a parte sul do seu território, como melhor se explanará mais adiante.
Mas, como se explica a divisão desta ilha em duas zonas distintas? Por que razão ela é disputada por dois países, a Turquia e a Grécia? Porque motivo o Reino Unido continua a possuir várias bases militares no seu território?
Domínio otomano
Para responder a estas questões convém recuar a meados do século XVI.
Nessa época, Chipre era um território controlado pela República de Veneza. Ora, Veneza e o Império Otomano eram inimigos de longa data, tendo-se envolvido em diversas guerras, a última das quais em 1570. Este conflito armado evoluiu rapidamente a favor dos otomanos que, em 1571, tomaram a capital da ilha, Nicósia, e em seguida o resto do território cipriota, situação que veio a ser ratificada pelo tratado assinado pelos beligerantes em 1573, o qual assinalou o princípio de três séculos de domínio otomano em Chipre. Em consequência, a situação demográfica da ilha mudou rapidamente. O Império Otomano organizou a vinda de dezenas de milhares de pessoas, turcófonos e muçulmanos. Em poucos anos, 30% da população original, que falava o grego, e era ortodoxa desde há mais de cinco séculos, converteu-se ao islão. Foi assim que se constituiu em Chipre uma comunidade turca vivendo, apesar de tudo pacificamente, com a comunidade cipriota grega, durante a referida ocupação otomana.
Colónia britânica
Entretanto, na sequência da guerra russo-turca de 1877-1878, o Império Otomano entrou em declínio e as potências ocidentais começaram a exercer sobre a ilha uma influência cada vez mais forte.
A partir de Junho de 1878, Chipre foi mesmo cedido pelos otomanos ao Império Britânico, que assumiu a sua administração «de facto» (embora, em termos de soberania, Chipre tenha continuado a ser um território otomano «de jure» até 5 de novembro de 1914), em troca de garantias de que o Reino Unido iria usar a ilha como uma base para proteger o Império Otomano contra uma possível agressão russa.
Na realidade, a ilha interessava aos britânicos, enquanto base militar chave para as rotas coloniais do Reino Unido. Por volta de 1906, quando o porto cipriota de Famagusta foi concluído, Chipre passou a ser um posto naval estratégico para os britânicos com acesso fácil ao Canal de Suez, a principal via para a Índia, que era então a mais importante colónia do Reino Unido.
Após a eclosão da Primeira Guerra Mundial e a decisão do Império Otomano de se juntar, em 5 de Novembro de 1914, ao lado das Potências Centrais, o Reino Unido anexou formalmente a ilha de Chipre que, em 1923, foi declarada colónia da coroa britânica, contra a vontade dos cipriotas gregos que sonhavam com a «união de Chipre com a mãe-pátria grega», pretensão essa conhecida por «Enosis».

Arcebispo Makarios foi deportado para as ilhas Seicheles
Em 1930, eclodiram as primeiras revoltas dos cipriotas gregos contra o governo britânico e a favor da união da ilha com a Grécia. Mais tarde, em finais da Segunda Guerra Mundial, os greco-cipriotas aumentaram a pressão com vista à supressão do domínio britânico na ilha. E, em Abril de 1955, passaram mesmo à luta armada. O arcebispo Makarios que liderava a campanha pela «Enosis» foi deportado para as ilhas Seicheles em 1956, depois de uma série de atentados anti-britânicos levados a efeito na ilha de Chipre.
Entretanto, apesar de os cipriotas turcos representarem apenas 18% da população, a separação de Chipre e a criação de um Estado turco no norte da ilha, conhecida por «Taksim» tornou-se uma política defendida pelos líderes cipriotas turcos e pela Turquia, durante a década de 1950. Na verdade, os líderes turcos defendiam a anexação da parte norte de Chipre à Turquia, visto que a mesma era por eles considerada como uma extensão da Anatólia. Foi neste contexto, que começaram os primeiros combates entre as duas comunidades cipriotas… grega e turca. Depois, o fosso cavado entre cipriotas gregos e cipriotas turcos agravou-se ainda mais em consequência dos afrontamentos comunitários extremamente violentos que tiveram lugar em 1958. As povoações mistas anteriormente existentes na ilha desapareceram do mapa. E os soldados britânicos decidiram mesmo instalar uma linha de demarcação entre os quarteirões gregos e o quarteirão turco na própria capital, Nicósia.
O Reino Unido decidiu então desembaraçar-se rapidamente do problema e, através dos acordos de Zurich e de Londres de 1959, pôs termo à luta anticolonial acima descrita.
A independência de Chipre foi proclamada em 1960, tendo o Reino Unido abandonado as pretensões que tinha sobre o território cipriota, com excepção da manutenção de duas bases militares. Por outro lado, o Reino Unido, a Turquia e a Grécia declararam-se «garantes» do equilíbrio constitucional encontrado para a recém-criada «República de Chipre» que adoptou a sua própria Constituição.
Período pós-independência
A verdade é que esta independência foi recebida sem entusiasmo pelas populações cipriotas: os gregos, 77% dos habitantes da ilha em 1960, continuavam a sonhar com a «Enosis» e os turcos com o «Taksim». E a Constituição, que consagrava a partilha do poder entre as duas Comunidades, grega e turca, foi por estas acolhida com particular reserva.
Por um lado, os cipriotas gregos manifestavam-se inquietos quanto às vantagens acordadas à minoria turca (cerca de 18% da população cipriota) , a qual apesar de não ter obtido a criação de um «Estado Turco do Norte», obteve, ainda assim, 30% dos lugares no Parlamento, 30% dos empregos nos serviços públicos e 40% nas fileiras da polícia e do exército. Por seu turno, os cipriotas turcos desconfiavam do Arcebispo Makarios, paladino da ideia da «Enosis», o qual exercia o cargo de presidente da «República de Chipre».
A tensão entre as duas Comunidades subiu de tom quando Makarios propôs, em 1963, uma alteração constitucional que previa a supressão dos direitos de veto de cada Comunidade, bem como a supressão da ponderação dos respetivos poderes, considerada excessiva pelos cipriotas gregos. Esta proposta foi recusada pelos deputados turcos do Parlamento que se demitiram em bloco.

A guerra civil
Mas a ruptura inevitável surgiu no final desse ano de 1963, na sequência de um incidente entre polícias gregos e cipriotas turcos, em Nicósia. A ilha entrou em ebulição, iniciou-se uma caça aos turcos, a população reagrupou-se por Comunidade e a guerra civil tornou-se, a partir de então, um facto consumado. Os funcionários turcos foram expulsos e os dirigentes turcos, incluindo o vice-presidente da República, deixaram os cargos que ocupavam para criar um governo separado.
A ruptura entre as duas zonas em conflito já era total quando, em Março de 1964, 2.500 capacetes azuis da ONU desembarcaram em Chipre com a missão de procederem à instalação de uma linha de separação entre as duas Comunidades. No fim desse ano, já havia 100.000 cipriotas turcos vivendo sob o controlo de uma «administração» não reconhecida pelo governo constitucional de Nicósia, autodenominada «Administração Provisória Cipriota Turca» financiada e apoiada pela Turquia. Enquanto isso, as instituições oficiais reconhecidas pela ONU como únicas autoridades legais, já só contavam nas suas fileiras com elementos cipriotas gregos.
O golpe de estado dos coronéis
Entretanto, em 1967 deu-se na Grécia o chamado «golpe de estado dos coronéis». Ora, querendo este novo poder de Atenas realizar a todo o custo a o velho sonho da «Enosis» entre a ilha de Chipre e a Grécia, o mesmo resolveu fomentar, em Julho de 1974, um novo golpe de estado na própria ilha de Chipre, na convicção de que, dessa forma, conseguiria obter imediatamente a união desta ilha à Grécia.
Como era de prever, a reação da Turquia não se fez esperar. Poucos dias mais tarde, os turcos lançaram uma ofensiva relâmpago em Chipre, batizada por «Operação Átila», tendo a Turquia passado a ocupar o norte da ilha de Chipre e erguido uma linha de separação entre as duas Comunidades cipriotas. Por outro lado, expulsaram para a zona sul de Chipre cerca de 150.000 cipriotas gregos, ao mesmo tempo que, em sentido inverso, procederam à transferência em massa dos cipriotas turcos que viviam no sul da ilha, para a zona norte controlada pela Turquia. No Verão de 1975, a separação geográfica das duas Comunidades consumou-se, tendo os cipriotas turcos, a norte, e os cipriotas gregos, a sul, ficado separados por uma «Linha Verde» de 180 km guardada pelos Capacetes Azuis da ONU e pontuada por uma centena de postos de observação, linha essa que passou a dividir a ilha de uma extremidade à outra e cortou em duas a própria capital… Nicósia.
Desde então, qual tem sido a evolução das duas zonas separadas de Chipre?
A norte, a referida «Administração Provisória Cipriota Turca» transformou-se, a partir de Fevereiro de 1975, numa espécie de «estado federado turco de Chipre». Depois, em Novembro de 1983, a mesma Administração Cipriota Turca (não reconhecida pelo governo de Nicósia, nem pela Comunidade Internacional com excepção da Turquia) procedeu à declaração unilateral de independência da zona norte de Chipre sob o nome de «República Turca de Chipre do Norte». Mas a situação económica e social desta zona sessionista agravou-se drasticamente a partir do momento em que foi objeto de um embargo organizado pelo governo de Nicósia e avalizado legalmente pela ONU: os seus portos e aeroportos foram interditados, tendo passado a ser apenas frequentados por companhias turcas; o correio direto foi igualmente interditado e o mesmo aconteceu com o turismo, que passaram ambos a dever transitar pela Turquia. Por outro lado, a sua população passou a ter mais colonos oriundos da região turca da Anatólia (cerca de 93.000) do que própriamente turcos cipriotas dos quais alguns milhares decidiram, entretanto, abandonar Chipre emigrar para outras paragens.
A sul, a «República de Chipre» sediada em Nicósia teve melhor destino, jogando a carta das trocas comerciais com o exterior, através do fomento do turismo internacional, bem como de uma política fiscal vantajosa para os investidores externos e para várias empresas offshore, em virtude das suas baixas taxas de imposto. Por outro lado, decidiu promover a concessão de bandeiras de conveniência a armadores estrangeiros com os consequentes benefícios, fiscais, legais ou outros, superiores aos que os mesmos teriam nos seus países de origem. Os serviços financeiros e os transportes são também partes importantes da economia cipriota. Mas tem sido o setor do turismo que tem ocupado uma posição dominante na economia cipriota. Com mais de dois milhões de turistas por ano, Chipre é o 40.º destino mais popular no mundo. No entanto, quando ajustado à população, o país sobe para a sexta posição. De acordo com o Índice de Competitividade em Viagens e Turismo do Fórum Económico Mundial, a indústria do turismo cipriota ocupa o 29.º lugar no mundo em termos de competitividade global, sendo que, em termos de infraestrutura turística, o turismo local ocupa o primeiro lugar no mundo. Enfim, de acordo com os dados do FMI, o PIB per capita de Chipre é de 30.769 de dólares, um pouco acima da média da União Europeia.
Dito isto, que dizer quanto ao futuro político da ilha e à sua eventual reunificação?
O último grande esforço para resolver a disputa de Chipre foi o Plano Annan, elaborado em 2004 pelo então secretário-geral da ONU, Kofi Annan, que propôs a instauração de um Estado Confederal em Chipre, cada Estado confederado devendo permitir a instalação (ou o retorno) de 33% dos residentes da outra Comunidade no seu solo. Este plano foi submetido a um referendo, no qual 65% dos cipriotas turcos votaram a favor e 74% dos cipriotas gregos votaram contra, alegando que o mesmo favorecia desproporcionalmente o lado turco.

República de Chipre aderiu à União Europeia
Entretanto, em 1 de Maio de 2004, a «República de Chipre» aderiu à União Europeia, juntamente com outros nove países. O país foi aceite na UE como um todo, embora a legislação europeia não seja válida para o território ocupado pela Turquia no norte da ilha, até que uma solução definitiva seja alcançada para o problema da divisão do Chipre.
O certo é que têm sido feitos esforços para melhorar a liberdade de circulação entre os dois lados da ilha. Em Abril de 2003, a autodenominada «República Turca de Chipre do Norte» aliviou unilateralmente as restrições na fronteira, permitindo que os cipriotas atravessassem entre os dois lados, pela primeira vez em 30 anos. Mais tarde, em Março de 2008, o muro, que tinha funcionado durante décadas na fronteira entre a República de Chipre e a zona tampão das Nações Unidas, foi demolido. E, em 3 de Abril do mesmo ano, a rua Ledra que esteve cortada em duas por um muro desde 1974, foi reaberta e tornou-se o primeiro ponto de passagem do centro da capital… Nicósia.
Por outro lado, no que respeita à eventual reunificação da ilha, as discussões diretas entre o norte e o sul de Chipre foram retomadas em Fevereiro de 2014 sob a égide das Nações Unidas e graças ao apoio americano. E foram relançadas em 15 de Maio de 2015.
Tudo isto são, naturalmente, pontos positivos. Apesar disso, o comportamento do presidente turco Recep Erdogan durante os anos mais recentes, não auguram, para já, uma evolução positiva em relação à questão de Chipre.
Com efeito, as suas tomadas de posição nos últimos anos testemunham a sua vontade de promover aquilo que alguns analistas consideram como uma «política neo-otomana» traduzida no expansionismo turco, político, económico, cultural e linguístico, e numa desmedida ambição de transformar, a longo prazo, a Turquia numa potência hegemónica não apenas na região oriental do Mediterrâneo, mas também num vasto território euroasiático que poderia agrupar outros países turcófonos, bem como regiões autónomas e comunidades de origem turca. Esta postura de Erdogan, associada a uma descarada arrogância e mesmo a atitudes provocatórias para com países vizinhos e aliados ocidentais tem, aliás, levado os seus críticos e opositores a afirmarem que ele se comporta como um «sultão» dos velhos tempos do Império Otomano. Isso tem sido particularmente evidente nas relações greco-turcas, como o comprovam as atividades levadas a cabo pela Turquia na exploração dos recursos de gás existentes nas águas territoriais gregas do mar Egeu (e até na própria zona económica de Chipre), e com repetidas e abusivas incursões no espaço aéreo e marítimo da Grécia.
Neste contexto, é bem de ver que a eventual reunificação da Ilha de Chipre não é algo que possa ser encarado como uma solução credível, no curto e no médio prazo.
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«Portugal e o Futuro», opinião de Aurélio Crespo
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Julho de 2020.)
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