:: :: JOSÉ CARLOS MENDES :: :: No primeiro episódio das «Histórias da Memória Raiana» o António Emídio «apresentou-nos» a família do Luís do Sabugal quando este se preparava para ingressar no Outeiro de São Miguel. Na «quarta temporada» o José Carlos Mendes recupera a carta do Balé Nàciso para o Luís do Sabugal... (Capítulo 4, Episódio 3.)

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HISTÓRIAS DA MEMÓRIA RAIANA
Capítulo 4 – Episódio 3
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EM SETEMBRO VOU TRABALHAR PARA A ARGÉLIA
Dijon, 20 de Agosto de 1973
Caro Exmo. Senhor Luís,
Hoje escrevo-lhe esta carta de duas páginas porque desejaria contar-lhe algumas misérias da nossa emigração, quer aqui em Dijon quer sobretudo nos bidonvilles dos arredores de Paris.
Eu era para ter começado a trabalhar na empresa aqui em Dijon (de que já lhe falei e onde agora estou) logo ao fim de três semanas de chegar aqui à França. Mas houve um problema com a Argélia que nem sei qual foi e a grande obra para onde eu ia atrasou. Por isso, tive de ficar em Paris mais uns quatro ou cinco meses.
Pois bem, como sei que o Senhor Luís aprecia estas coisas, fui analisando e vendo bem o que acontecia com os nossos amigos portugueses que acabavam de chegar e com aqueles que ao fim de pouco tempo traziam a família para a França, ainda sem terem trabalho fixo e sem garantias de trabalho para as mulheres, o que era um grande erro.
Isso fez com que tivéssemos que ser nós, o que já por aqui estavam a começar a organizar a vida…
Uma miséria, Senhor Luís. Acredita que os garotos passam fome? Acredita que alguns sei eu que já têm algum amealhado, mas para pouparem e por sovinice doentia, nem se importam se os miúdos têm fome.
A pior história de todas foi esta:
Há dias estávamos a cear, eu e os meus dois colegas de casa. Aí entram dois irmãozitos: ela com nove anos e ele com seis. Vinham da escola, foram a casa deixar a papelada e vieram cá a casa que tem sempre a porta aberta.
O meu amigo disse-lhes se queriam comer. O garoto disse logo que sim. A miúda calou-se, como sempre, pois já sabe o que é ter vergonha da vida que passam lá em casa. Perguntei eu:
– Então lá em tua casa não há que comer?
Resposta dela:
– Só está a comer o meu pai porque não tem dinheiro para comprar para nós e tem de comprar só para ele porque trabalha.
Como calcula, ficámos os dois sem fala. Comeram os dois connosco, como tantas vezes.
Mas um dia foi pior. A mãe, que trabalha como porteira dois ou três dias por semana e já ganha um pouco, não lhes deu comida porque tem de poupar dinheiro para pagar a viagem para cá, para Paris. E os garotos passam fome de cão todos os dias que até metem dó.
Que desgraça, Senhor Luís: assim é a vida dos nossos compatriotas que vieram à procura de melhor vida… mas enquanto se organizam e não… os filhotes é que as pagam.

Meu caro Amigo,
Desculpe maçá-lo com estas histórias do bas-fond desta nossa sociedade aqui na França – mas talvez até goste de ler estas coisas.
E agora outra coisa que muito me agrada.
Olhe, Senhor Luís, deixe-me abusar mais um bocadinho da sua paciência e dizer-lhe uma coisa muito boa para mim. Já namoro aqui com uma menina francesa, a Nicole, que é da minha idade mais mês menos mês e que tanto quer ter um filho meu. Acho que ela já está grávida, que é o que os dois mais queremos. Como vou sair para a Argélia em Setembro, ao serviço da tal empresa, a Brignon, tenho medo que o meu filho vá nascer enquanto eu estou por lá e não é fácil eles deixarem-me cá vir, porque lá uma obra pode demorar a arrancar, mas quando começa, não pode parar até ser toda acabada e os equipamentos pesados virem todos embora porque é muito perigoso ficarem lá.
Mas tudo há-de correr bem. Depois darei notícias.
Obrigado, Senhor Luis, por me ter respondido e por me ter desejado o melhor para mim e para os meus.
Com toda a consideração,
Receba um abraço deste que se assina,
Balé Nàciso / ou / Balé Nobre.

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José Carlos Mendes
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Os episódios das «Histórias da Memória Raiana» são escritos semanalmente por um autor diferente. Participaram na «primeira temporada»: António Emídio, Fernando Capelo, José Carlos Mendes, Ramiro Matos, António José Alçada, Franklim Costa Braga, António Martins, António Alves Fernandes, Joaquim Tenreira Martins, Georgina Ferro e José Carlos Lages.
Nesta «quarta temporada» o José Carlos Mendes recupera a carta do Balé Nàciso para o Luís do Sabugal…
Total de episódios publicados: 31.
Apesar de fazer referência a nomes e lugares verdadeiros da região raiana dos territórios do Sabugal esta é uma obra de ficção e qualquer semelhança com nomes de pessoas, factos ou situações terá sido mera coincidência (ou talvez não!)
José Carlos Lages
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