O romancista e contista Abdulrazak Gurnah, de 73 anos, nascido em Zanzibar, região autónoma da Tanzânia, foi o vencedor do Prémio Nobel da Literatura de 2021.
A Academia Sueca, que atribuiu o prémio, justificou a escolha do Abdulrazak Gurnah «pela sua capacidade de mergulhar de forma intransigente mas também compassiva nos efeitos do colonialismo e nos destinos dos refugiados que estão num abismo, divididos entre culturas e continentes».
O júri da Academia destacou ainda a «dedicação à verdade» particularmente notória na escrita do autor e a sua «aversão às simplificações». Os romances do escritor são descritos, de uma forma geral, como movimentos de «afastamento de descrições estereotipadas» e obras que «despertam o nosso olhar para uma África Oriental culturalmente diversificada e desconhecida de muitos leitores de outras partes do mundo».
Na forma como escreve sobre a experiência de refugiados, o escritor dá particular atenção à «identidade e à imagem que estes têm de si mesmos», observou o júri. «As personagens dão por si em fendas entre culturas e continentes, entre uma vida que existia e uma outra vida que emerge; é um estado inseguro que não se pode nunca resolver», precisou ainda o júri da Academia Sueca.
O autor agora laureado pelo Comité do Prémio Nobel da Literatura publicou o seu primeiro romance em 1987, tendo o ultimo sido publicado em 2020. A obra «By The Sea», o seu sexto romance publicado em 2001 foi traduzida em 2003 para português com o título «Junto ao Mar» (Edições Difel). Por sua vez, a editora Cavalo de Ferro anunciou que, entre 2022 e 2023, irá lançar no mercado quatro obras de Gurnah.
Segundo a nota biográfica divulgada no site do Nobel da Literatura, «Abdulrazak Gurnah conhece bem a realidade de um emigrante e refugiado, sobre a qual aliás o autor tem discorrido em obras de ficção ao longo das últimas décadas». A mesma nota acrescenta, a propósito, que «devido às convulsões políticas em Zanzibar e na Tanzânia durante os anos 1960, que levaram à opressão e perseguição de cidadãos de origem árabe (grupo étnico de que o ora laureado fazia parte), Gurnah foi forçado a fugir do país aos 18 anos com a família, tendo chegado a Inglaterra como refugiado no final da década de 1960».
Abdulrazak Gurnah lecionou Literatura Inglesa e Literatura Pós-Colonial na Universidade de Kent, em Canterbury, até se ter reformado recentemente, tendo-se especializado em estudos pós-coloniais e na obra de autores como Salman Rushdie ou Ngũgĩ wa Thiong’o (este último apontado pelas casas de apostas como um dos possíveis vencedores do Nobel deste ano) ou Wole Soyinka, que era até agora o único escritor negro africano a ser distinguido (em 1986) com este prémio.
«No seu universo literário tudo está em movimento»
A obra que tornou Gurnah mais conhecido e lido em Inglaterra foi o seu quarto romance, «Paradise», publicado em 1994. Desde então, o escritor publicou «Admiring Silence» (1996), «By the Sea» (2001), «Desertion» (2005), «The Last Gift» (2011), «Gravel Heart» (2017) e «Afterlives» (2020). Tem ainda editados dois volumes de uma obra ensaística intitulada «Ensaios sobre a Escrita Africana».
A principal responsável pela edição da obra de Abdulrazak Gurnah no Reino Unido nos últimos 20 anos, Alexandra Pringle (editora-chefe da Bloomsbury Publishing, sediada em Londres), defendeu que «a atribuição deste prémio é justa». Citada pelo jornal The Guardian, salientou que Gurnah «tem escrito desde sempre sobre a sensação de deslocamento e de não pertença mas das maneiras mais bonitas e assustadoras, refletindo sobre o que arranca as pessoas das suas raízes e as leva a espalhar-se pelos continentes». E acrescentou: «A sua escrita é particularmente bonita e séria mas também tem humor, gentileza e sensibilidade. É um dos mais importantes escritores africanos ainda vivos e nunca ninguém lhe tinha dado atenção. Isso desfez-me. Tem sido ignorado e agora acontece isto.»
Também o presidente do Comité do Prémio Nobel da Literatura, Anders Olsson, defendeu a atribuição do prémio a Gurnah e deixou-lhe rasgados elogios, observando que «no seu universo literário tudo está em movimento e em mudança constante, desde memórias a nomes e identidades».
As casas de apostas mais conceituadas quanto ao vencedor do Nobel da Literatura deste ano apontavam como favoritos à obtenção do prémio a escritora francesa Annie Ernaux, a poeta canadiana Anne Carson, o japonês Haruki Murakami, a romancista russa Ludmila Ulitskaya, a autora canadiana Margaret Atwood, a escritora de Guadalupe Maryse Condé e o queniano Ngũgĩ wa Thiong’o. A verdade é que frequentemente o vencedor do Nobel da Literatura não tem saído da lista de principais candidatos sugeridos pelas casas de apostas. Refira-se ainda, a título de curiosidade, que entre os restantes nomes apontados pelos apostadores estavam Jamaica Kincaid, escritora de Antígua e Barbuda, o húngaro Peter Nadas, o norueguês Jon Fosse, o norte-americano Don DeLillo e o espanhol Javier Marías. O autor lusófono mais bem colocado nas previsões dos apostadores foi o moçambicano Mia Couto.
As escolhas da Academia Sueca…
Desde a sua criação em 1901 até aos nossos dias, a Academia Sueca tem sido alvo de críticas por parte dos especialistas e de circulos de leitores que têm sustentado que o valor literário e estético de uma obra não deverá ser o único critério a ter em consideração pela Academia para a atribuição do Nobel da Literatura. Alguns desses críticos têm, por exemplo, defendido que a dimensão diplomática e valores como o respeito do direito dos povos e a pacificação das relações internacionais deveriam igualmente ser tomadas em conta para essa atribuição.
No entanto, há que relativizar estas críticas, uma vez que a Academia tem levado em linha de conta os diversos critérios atrás referidos e, de modo geral, não tem cometido demasiados erros a este respeito. A verdade é que, mesmo se o critério político tem sido por vezes utilizado, o valor estético e literário tem-se mantido como o critério primordial: de entre a centena dos laureados com o Prémio Nobel da Literatura até hoje, encontram-se várias dezenas de grandes nomes da literatura mundial. Entre os mais célebres, destacam-se designadamente Rudyard Kipling (1907), Selma Lagerlöf (1909), George Bernard Shaw (1925), Thomas Mann (1929), Luigi Pirandello (1934), Hermann Hesse (1946), André Gide (1947), William Faulkner (1949), Ernest Hemingway (1954), Albert Camus (1957), Samuel Beckett (1969) Gabriel García Márquez (1982), Wole Soyinka (1986), Toni Morrison (1993) J. M. G. Le Clézio (2008) ou Mario Vargas Llosa (2010).
Isso não tem obstado a que a Academia Sueca tenha por vezes feito as suas escolhas a partir de considerações políticas, como sucedeu, por exemplo, com a atribuição do Nobel a Jean-Paul Sartre (1964), a Pablo Neruda (1971) ou a José Saramago (1998), figuras próximas do comunismo, ou a Camilo José Cela (1989), acusado, por alguns, de conivência com o franquismo, ou a Günter Grass (1999) criticado pelas suas controversas tomadas de posição políticas anti-Israel. Nos anos 2000, o mesmo sucedeu com a atribuição do Nobel ao dramaturgo Harold Pinter (2005), destacado ativista político britânico e adversário da guerra no Iraque, ou ao escritor turco Orhan Pamuk (2006), que denunciou o genocídio arménio e o massacre dos kurdos levados a cabo pela Turquia.
Algumas das escolhas da Academia motivaram que a mesma tivesse sido acusada, por uns, de «elitismo», e de «engajamento esquerdista» por outros, que a criticaram por ter premiado romancistas e poetas desconhecidos do grande público conotados com a esquerda. Foi o que igualmente sucedeu com a escolha do escritor chinês Mo Yan (2012) que suscitou vivas contestações no seio do mundo das artes, das letras e da cultura, em razão da sua suposta proximidade às autoridades de Pequim e do seu silêncio face à repressão de escritores e de intelectuais chineses opositores ao regime, ou face à aplicação da censura e ao não respeito dos direitos humanos na China.
Não obstante estas críticas de que tem sido alvo, a Academia Sueca sempre fez questão de reivindicar a sua independência. E, se é certo que não tem sido raro que o prémio Nobel tenha revestido um significado político, não é menos verdade que esse prémio teve, em diversos casos, um valor de denúncia face a regimes de cariz autoritário. Efetivamente, vários escritores exilados, dissidentes, contestatários, perseguidos ou impedidos de publicação das suas obras no seu país foram recompensados com o prémio Nobel, como foi o caso de Miguel Ángel Asturias, Boris Pasternak, Pablo Neruda, Alexandre Soljenitsyne e Gao Xingjian.
Para além das críticas fundadas em considerações de ordem política, a acusação que mais se tem feito ouvir, nas últimas décadas, relativamente à atribuição do Nobel da Literatura, tem sido a alegada tendência eurocêntrica e ocidental do júri da Academia Sueca e o facto de certas zonas geográficas do planeta terem sido por ela totalmente descuradas.
Na verdade, a Europa tem sido incontestavelmente o continente mais recompensado pela Academia. Para dar um exemplo da menor atenção por ela dada a a outros continentes, a África esperou demasiado tempo antes de obter o seu primeiro laureado – o nigeriano Wole Soyinka – em 1986. Seguiu-se o egípcio Naguib Mahfouz em 1988, depois os sul-africanos Nadine Gordimer e J. M. Coetzee, laureados respetivamente em 1991 e 2003 e agora Abdulrazak Gurnah.
Todavia, não há razão para exagerar estas críticas, tendo em conta a atribuição que, desde os anos 1960, tem sido feita do prémio Nobel da Literatura a autores oriundos de países não europeus : África (Egito, Nigéria, África do Sul, Tanzânia), América (Canadá, Estados Unidos, México, Guatemala, Santa Lúcia-Caraíbas, Colombia, Perú, Chile), Eurásia (Rússia) Ásia (Turquia, Israel, India, China, Japão) e Austrália.
Em suma, nenhuma pessoa ou instituição deste mundo está isento de críticas. Ou, como diz a sabedoria popular, «no melhor pano cai a nódoa…».
Como quer que seja, o Prémio Nobel da Literatura continua a ser um dos galardões mais prestigiados e mais mediáticos do mundo e tem contribuido, de forma incontestável, para a promoção internacional dos grandes autores que, há mais de um século a esta parte, têm publicado as suas obras, assegurando o renome e a posteridade dos laureados e a ampla difusão dessas obras à escala planetária.
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«Portugal e o Futuro», opinião de Aurélio Crespo
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Julho de 2020.)
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