Trata-se de uma estória que não tem qualquer fundamento nos dias de hoje. Mas toca em aspectos sensíveis da responsabilidade de servir. Pese embora escrita num tempo pós-eleitoral, pode-se aplicar a tanta coisa, desde que o cargo ou função seja eleita. Como o surreal é a forma do texto, o leitor, ou leitora, pode imaginar o que melhor entender.

Na realidade o número até era «não identificado». Normalmente são os novos «pedintes» a oferecer um serviço que já temos. E quase toda a gente não atende. Paz e descanso é o que se pretende e as técnicas de marketing são hoje tão arrojadas que nos levam à queda precoce do cabelo.
No entanto senti pena de tanto jovem que luta pela vida que resolvo atender:
«Boa tarde, como está. Desculpe o incomodo mas estou a representar a família e pediram-me para transmitir que o seu amigo faleceu.»
Nada, mas nada que esperasse. Coitado. Os sessenta já ultrapassam o limite da imortalidade que sempre sonhámos. Fiquei triste. Eramos mesmo muito amigos.
«Pois entendo o seu pesar, mas desculpe tenho mesmo de informar que o seu amigo fez um testamento.»
«Não me diga que sou herdeiro? E a família, o que diz?»
A voz do outro lado ainda ficou mais pausada. A situação era delicada. Não se tratava de bens, móveis ou imóveis.
«O seu amigo foi recentemente eleito. E faleceu logo no início das suas funções. Um ataque cardíaco.»
Continuava sem perceber o que me esperava. Este meu falecido amigo, de facto pertencia a diversas organizações, políticas, sociais e até cargos em diversas administrações de conceituadas empresas.
«Ele libertou-se de quase tudo o que desempenhava. Os médicos aconselharam-no em face da vida muito agitada que tinha. Mas esta nova função era como um objectivo de fim de vida e estava muito empenhado em resolver os problemas que o esperavam, mas infelizmente não teve essa sorte. Porém ainda horas antes de partir fez o testamento e, na realidade, o Senhor vem designado.»
Coisa estranha. O que me vai deixar quando tem filhos, netos, sobrinhos e sei lá que mais.
Em face das complicações legais e administrativas que ia ter se recusar a vontade do falecido, entendi perguntar quais os direitos que herdava.
«Bem, sabe o seu amigo foi eleito. Julgo que o sabia. E no testamento vem por vontade do seu amigo que o Senhor ocupe o seu lugar. Posso adiantar que há um parecer jurídico de um prestigiado Professor de Direito, que suporta esta decisão.»
Eleito? Eu? Por morte de um amigo. Mas não há alternativas? Agora que estava com a vida arrumada vem esta. Os nervos afloraram-me de irritação, mas tinha de fazer um esforço e ser educado para saber mais o que viria a seguir.
«Bom, a principal função é saber ouvir.»
Estranho. Ouvir. Estando a entrar na surdez vem-me este com um trabalho de «ouvidor». Será que vou para uma espécie de confessionário, ou então atender telefones de apoio a pessoas que passam mal?
«Sim, mas há ainda outros atributos. Para além de ouvir, deve pensar, ponderar e depois também saber decidir.»
O silêncio tomou conta da conversa. Ao ponto de já o ouvir bem longe:
«Estou? Alô! Ainda está aí?»
Não sentia vontade nenhuma. Há um tempo para tudo. Mas haverá mesmo?
«Bem, marque lá a posse e diga quais os procedimentos que tenho de tratar.»
Salvaterra do Extremo, 2 de Outubro de 2021
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«No trilho das minhas memórias», ficção por António José Alçada
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Junho de 2017)
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Salvaterra do Extremo tem a ponte romana de Alcântara, muito bem conservada e a Srª do Almurtão famosa pela linda canção e agora pelo bom restaurante que lá funciona.
Espero que o “eleito” tenha muito trabalho e seja empenhado nas suas tarefas e não consiga ter tempo para apreciar o que foi referido no parágrafo anterior.
Bonito artigo, sobretudo pela fértil imaginação que tiveste.
Abraço