Numa tarde quente de um verão antigo sucediam-se as correrias no largo do cruzeiro quando a garotada entrou, em debandada tonta, na taberna da Josefa. Ninguém sabia bem o que procurava mas todos encontraram, atrás do balcão, uma rifa que pendia do teto.

A rifa era um sorteio materializado em dois quadrados de cartão. Um maior, que continha, enleadas, as bugigangas a sortear. Outro, mais pequeno, onde se picava com um estilete para obter o número que poderia, ou não, corresponder a um prémio.
Entre a joça apresentada sobressaíam várias navalhas, alguns saca-rolhas, dois ou três porta-moedas, uma multidão de pequenos chocolates, uma garrafa de ginja e uma bola.
A bola parecia das boas. De tamanho normal, exibia uma imensidade de hexágonos desenhados fazendo contrastar cores múltiplas.
Sucedeu, então, o inevitável alvoroço. Houve garotos que revoltearam os bolsos. Houve outros que contaram tostões. Enfim, todos fizeram de tudo para garantir uma picada na rifa. Contudo, e apesar da desmedida emoção, os brindes não passavam de minúsculos chocolates.
O Tónio Silva entrou, tardiamente, na tasca e, na calma dos seus oitenta anos, agarrou-se ao joelho direito para abafar as dores de uma forte artrose. Coxeou até ao balcão, espalhou sobre o tampo duas ou três moedas e gritou para a Josefa:
– Ora, deixa-me cá ver meio quartilho .E quero, também, um buraco na rifa.
Virou o copo de duas assentadas e, de seguida, perfurou o cartão . A Josefa verificou prontamente o número, escancarou os olhos e gritou:
– A bola!
– Rais parta – gritou o Tónio – Eu antes queria a ginja.
E saiu tão coxo quanto havia entrado mas com a bola debaixo do braço. Os garotos, moídos de inveja, vozearam:
– Ó Tónio, nós queríamos a bola. Dá-nos a bola.
– Pois darei – respondeu ele – Darei a bola a quem provar que é o mais corajoso, o mais esperto e o mais inteligente de todos. Venham comigo que eu vou pensar no assunto.
O Tónio entrou em casa, buscou uma malga onde esmagou pontas de gesta verde em vinagre conseguindo, assim, uma mistura horrorosamente amarga. Por fim questionou:
– Quem tem a coragem de meter, como eu, o dedo indicador nesta mixórdia e depois chupar?
Passou, de imediato, a exemplificar enquanto os garotos se perfilavam para repetir o exercício.
Finda a sessão sobreveio o veredito. O Tónio endireitou-se e sentenciou:
– Ora vamos lá ver. A bola não será apenas para um mas para todos vós.
Passou, depois, à fundamentação:
– E porquê? Porque todos foram espertos tentando ficar com ela sem a comprar. Também porque todos foram corajosos e provaram a mistela. Mas nenhum de vocês foi muito inteligente! Eu afundei o indicador na mexida e chupei pelo mindinho. E vocês? Todos mergulharam e chuparam pelo indicador. Claro que não estou satisfeito convosco. Ainda assim vou dar-vos o prémio. Não pela inteligência, claro. Apenas, pela coragem e pela esperteza.
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«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
(Cronista no Capeia Arraiana desde Maio de 2011)
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