Às terças-feiras é tempo da poesia de Georgina Ferro. A poetisa raiana junta a sua sensibilidade artística ao amor e às memórias pelas gentes e terras raianas…

UM ANO À ESPERA DO MÊS DE AGOSTO
Oi, ti João. Bons dias nos dê Deus
O vento já amainou esta tarde!…
Quebrando a dolorida calma,
Começou assim a recordação
Dos tempos que ele dizia seus
E que tinha a arder na alma:
O acarretar da lenha, feno,
Da palha e do grão de centeio,
Das tantas sacadas de carvão…
Dos muitos trabalhos da lavoura
Da alegria e euforia de permeio
Ah, a cantoria da vindima
No coro de vozes estridentes
Ao ritmo do tinir da tesoura;
Na eira, lembrou as desfolhadas
Que se prolongavam ao serão.
Noites de luar enfeitiçadas
De risos soltos em gargalhadas
Onde beijou a mulher menina
Ruborizado pelo pudor
Envergonhado da ousadia
De revelar seu secreto amor;
Avivou também aquelas tardes
Sentado no Largo do Pocinho
Enquanto as elegantes donzelas
Passavam a caminho da fonte.
Os mancebos, um pouco cobardes,
Duma cobardia de ternura,
Atiravam piropos, baixinho
Olhos baixos, mas cravados nelas
Que os encaravam bem defronte,
Cientes da sua formosura…
Formosas as moças de antanho!
Cabelos apanhados em trança
Olhar pestanudo e brilhante
Um jeito de caminhar estranho
Mistura de marcha e de dança
De sorriso fácil, cativante
Que ele guardara na memória
E recorda a cada instante
Num beijar da alma, nesse jeito
Que ainda hoje o Ti João
Sente poisar terno no seu peito
No íntimo do seu coração.
Lembra, do seu tempo de menino
As crianças, em bando feliz
Cantando pelas ruas o hino
Da aldeia que as viu nascer
Ou outra melodia qualquer.
Jóias pequeninas a crescer
De pedra e sacola na mão
Primeiros passos de aprendiz
Da vida, sabida em lição
Para ser-se Homem ou Mulher
Ofano mostra a cicatriz
Prenda de um toiro na capeia
Quando pegara ao forcão;
Mostrando, ainda, outra marca,
Lembra o dia, no chafariz,
Em que usara o aguilhão
E fora escornado pela vaca
Que lhe deixou uma chaga feia!
E quando a irmã o salvara
Do burro que o escoiceara
Lá para o Vale da Catrina ?!
Só recusa lembrar a saída
Dos amigos e da sua gente
Deixando-lhe a alma dorida
Entregue ao vento, chuva,neve…
Uma dor tal, que só quem a sente
E fica um ano à espera
De ouvir passos, ver um sorriso
Sentir um carinho ao deleve
No seu rosto, velho, engelhado
Poderá compreender deveras
O que é não se saber amado!…
Sentir perder-se do paraíso
Sem jamais, poder ser encontrado…
Num já tardio mês de Agosto
Ao sol-pôr do toque das Trindades
Na Casa da Pedra, ao Pocinho
Saudei o ti João, outra vez
Já não li expressão no seu rosto
Já não vi bronze na sua tez
Não sofria mais, nem de saudades…
Afaguei-o com muito carinho
Como era antes o meu jeito
Pus-lhe na cabeça a minha mão
E estreitei-o contra o peito
Mas não lhe ouvi o coração.
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«Gentes e lugares do meu antanho», poesia de Georgina Ferro
(Poetisa no Capeia Arraiana desde Novembro de 2020)
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