Quando eu era menina, o correio chegava à aldeia, dentro dum saco de lona escuro que o senhor Ismael atirava lá de cima do tejadilho da camioneta da carreira, cá para baixo, com muito jeitinho, não fosse quebrar qualquer encomenda ou amachucar alguma correspondência.
Depois, a menina Aurora levava-o para um gabinete pequenino, logo atrás da porta de casa, abria-o e ajeitava as cartas, postais, bilhetes ilustrados… em molhinhos que trazia para a rua, onde se havia juntado um magote de gente que se calava, num silêncio respeitoso, mal a menina Aurora assomava à porta, a ler em voz sonante o nome do destinatário da missiva, que ia sendo passada de mão em mão até à pessoa que havia dito presente. Ou de alguém que dizia «Eu levo!» ou «Eu posso levar!» Nem sempre a Menina Aurora acedia em entregar, consoante eram as ordens que teria recebido do destinatário.
Mas, na minha vila de Manteigas, o correio era distribuído pelo nosso carteiro que vinha até às Caldas e à Fonte Santa, passando pela Nossa Senhora dos Verdes, duas vezes ao dia, durante o Verão. Chegava à minha casa por volta das onze horas e voltava pelas dezasseis. No Inverno só vinha uma vez e tentava aproveitar uma hora com o tempo mais favorável. Por vezes, o fato de oleado escorria água por todo o lado. É que nessa altura não havia plástico para maior resguardo!…
Mas a maior recordação do meu carteiro, foi aquele que, ano após ano, me levou o correio à minha escola duma linda aldeia alentejana e que hoje me veio depositar a minha correspondência na caixa do correio. Eu estava à porta quando ele chegou. Reconheci logo aquele rapazinho que chegara à aldeia onde eu leccionava, de sorriso franco e doce, tão doce como eram aqueles jovens acabadinhos de serem aprovados para um serviço de responsabilidade. Sim, que naquele tempo, não era qualquer um que conseguia passar na avaliação exigida.
Este jovem não só foi aprovado pelos seus chefes como por toda a população onde ele, todas as manhãs ia levar o correio quer chovesse torrencialmente, fizesse um frio de rachar ou uma calmaria do Verão Alentejano!… E era vê-lo no seu andar ligeiro, ora ao lado da bicicleta que lhe aliviava o peso do saco ora montado nela para percorrer distâncias maiores. Apeava-se para ir bater de porta em porta a entregar cartas com palavras a deslizarem desajeitadamente por linhas, que se tornavam ilegíveis a quem mal sabia ler! Por vezes, nem aquelas que vinham escritas com aprumo e com letras bem desenhadas faziam sentido a quem não andara à escola!
Então, ele encostava a bicicleta a um qualquer muro e ajudava a decifrar o enigma da missiva. E vivia com os seus utentes as tristezas e alegrias de cada mensagem chegada, ria com as alegrias e sofria com as suas doenças e desgostos. Depois, era o pedido de trazer mais umas cartas com selo para a sua «Maria» escrever lá por dentro, e se o senhor carteiro fizesse o favor, acrescentava-lhe a direcção bem posta.
Era um gosto ver aquelas pessoas à mesma hora a perguntarem se já tinha passado o carteiro. Umas porque esperavam um aerograma do filho que estava na guerra no Ultramar, uma carta do marido que estava a tratar-se no hospital, ou da irmã que tinha ido viver para fora; Outras, as mais novas, esperavam carta do namorado ou tinham elas escrito uma carta para ele fazer o favor de enviar… Todos lhe confiavam os seus segredos tal como se fora a um padre no confessionário.
Mas, também o esperavam para lhe entregarem um molhinho de agriões acabadinho de colher, uma lancheira com as provas da carne do porco que tinham matado, uns figuinhos que se haviam colhido antes do sol nascer, um cestinho de batatas, um molhinho de alhos, uma réstia de cebolas… Por mais que ele recusasse e dissesse que não podia aceitar, até porque só tinha a bicicleta, as pessoas insistiam e voltavam a insistir pois era o que de melhor tinham para lhe poderem mostrar quanto o estimavam. Havia quem o esperasse todas as manhãs só para ouvirem um «Bom dia!» e sentirem um sorriso aprazível.
Era o Senhor Carteiro de quem todos têm saudade. E eu, ao vê-lo à minha porta, hoje um homem já mais entrado na idade, senti-me rejuvenescer ao reconhecer aquele sorriso simpático de há anos atrás. E por mais mecanizado que esteja o serviço, penso que daria tudo para que a evolução tivesse sido mais humanizada! Agora nem tempo tem para poder parar um minuto a dar o «Bom dia!»
Hoje, faltaram três colegas ao serviço e os outros têm de fazer o trabalho por quem faltou, custe o que custar! Horas extraordinárias?!, só para serem feitas, não recebem mais por isso… Além de que, cada dia vão para seu lado.
«Já não vem o nosso carteiro!»
Agora já passou o carteiro a deixar o correio na caixa…
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«Gentes e lugares do meu antanho», crónica de Georgina Ferro
(Cronista no Capeia Arraiana desde Novembro de 2020)
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