:: :: ANTÓNIO JOSÉ ALÇADA :: :: No primeiro episódio o António Emídio «apresentou-nos» a família do Luís do Sabugal quando este se preparava para ingressar no Outeiro de São Miguel. Seguiram-se o Fernando Capelo, o José Carlos Mendes, o Ramiro Matos, o António José Alçada, o Franklim Costa Braga, o António Martins, o António Alves Fernandes, o Joaquim Tenreira Martins, a Georgina Ferro e o José Carlos Lages. Nesta «segunda temporada» vamos conhecer a deserção da guerra de Angola de António José Alçada… (capítulo 2, episódio 4.)
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HISTÓRIAS DA MEMÓRIA RAIANA
Capítulo 2 – Episódio 4
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DESERTEI…
Nem sei o que me passou pela cabeça! Mas de facto desertei! Uma vergonha naqueles tempos de 1964. O Luís, meu grande amigo e confidente tudo fez para me demover. A pena era pesada se fosse apanhado e a minha família ficaria com o nome «manchado» por esta horrivel ousadia.
A minha Madrinha de Guerra era de Vale de Espinho. Uma jovem encantadora que rezava todos os dias 10 Avé-Maria para que a protecção Divina, me encaminhasse na Missão de defesa daquela que seria a minha Pátria.
Porém, sentia um ardor de que a minha missão seria outra.
Ainda me aguentei ao ensinar Língua Portuguesa a meninos e meninas de aldeias da Lunda, muito perto de Henrique de Carvalho. Aquele olhar negro deixava-me cheio de ternura, por tanta inocência. Adoravam aprender e guardavam o lápiz que eu lhes comprava na Cantina, com um carinho nunca visto.
Mas de repente tudo mudou.
Os homens dos diamantes começavam a chegar e tudo aquilo era para mim um sofrimento que me abalava. Sem dó nem piedade, montavam autênticos quartéis com milícias privadas, a cavar as terras e os rios ainda cândidos da mão do homem.
«Luís, isto é demais para mim! Vou mesmo fugir. Tudo isto não passa de uma farsa…»
Aquelo abraço ficou-me guardado para sempre. Ele sabia o que eu iria passar.
Com a ajuda de um colega de faculdade, natural de Angola, combatente num dos movimentos de libertação, consegui fugir e chegar ao chegar ao Zaire. Pela calada da noite e com o segredo bem guardado, uma Renault 4 esperava por mim do lado de lá do Rio Luachimo.
Encontravamos sempre às quartas-feiras de lua nova. A PIDE muito dificilmente conseguiria descodificar a lógica desta combinação. E, por outro lado, o meu motorista era da máxima confiança e ia-o compensando deixando livre para desfrutar uma paixão que tinha numa das aldeias.
A este amigo africano, levava-lhe periodicamente cerveja e tabaco. E ele fruta deliciosa do lado congolês, como ananás, manga, vários tipos de banana e café. Naquela noite sabia que seria a última vez que o via. Tal como o Luís, o Lúcio, era outro grande amigo que eu deixava até um dia.
O facto é que depois de atravessar a pé o Luachimo, com receio dos crocodilos, vi a silhueta do homem alto e magro que me aguardava. A viagem ainda foi longa sem qualquer farol ligado. O bréu da noite parecia não incomodar o meu amigo. Sabia o caminho de «olhos vendados.» Mais um abraço sentido.
Segui numa viatura do exercito congolês, que me cedeu roupa civil, com destino ao Zaire, onde apanharia um avião comercial em Kinshasa para Argel. Tinha documentos e uma nova identidade francesa. Durante meses andei a pagar ao Lúcio toda esta operação. O objectivo era chegar primeiramente Paris e depois Madrid.
Em Argel, estavam sediados os principais movimentos de libertação de Angola, Moçambique, Guiné e até de São Tomé. Tinham uma forte representação e detinham uma base logística, com secretariado e uma agência de informação, com comunicados de impressa sobre a situação militar no teatro de operações. Era a partir daqui que denunciavam para as principais agências de notícias os ataques efectuados e as baixas sofridas.
Voltei a mudar de identidade, com novos documentos mas mantendo a nacionalidade francesa. Recebi uma pequena mala com roupa, descansei e tomei um banho bem quente.
Voei no dia seguinte para Paris e de metro dirigi-me logo para a Gare du Nord apanhar o comboio para Madrid.
Não foi díficil chegar a Madrid. De facto, a logística destes movimentos dava que pensar. Tinham que ter apoio político de países aliados.
O passo seguinte era chegar a Salamanca e depois rumar a La Alberguería de Argañán, já pertinho de Aldeia da Ponte, onde um guarda fiscal me levaria para Portugal.
Este guarda era um nosso velho amigo, e o Luís por correio aéreo informou-o das datas previsíveis da minha chegada.
E assim foi. Tal como um conto de fadas. A guardia civil sempre amiga da nossa guarda fiscal, lá ajudou mais um clandestino.
Ao pisar o solo lusitano, estava a minha Madrinha de Guerra a aguardar-me. O cheiro raiano, arrancava-me o peito para o cabrito, o vinho e a broa. O paladar gritava de ansiedade. Porém… estava chorosa.
Mais atrás, bem no escuro, já lá estava o carro da PIDE.
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António José Alçada
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Os episódios das «Histórias da Memória Raiana» são escritos semanalmente por um autor diferente. Participaram na «primeira temporada»: António Emídio, Fernando Capelo, José Carlos Mendes, Ramiro Matos, António José Alçada, Franklim Costa Braga, António Martins, António Alves Fernandes, Joaquim Tenreira Martins, Georgina Ferro e José Carlos Lages.
Na «segunda temporada» continuam a saga o António Emídio, Fernando Capelo, José Carlos Mendes, António José Alçada, Franklim Costa Braga, António Martins, António Alves Fernandes, Georgina Ferro e José Carlos Lages
Este domingo o António José Alçada recorda a deserção da guerra de Angola. No domingo, 26 de Abril, é a vez do Franklim Costa Braga.
Total de episódios publicados: 15.
Apesar de fazer referência a nomes e lugares verdadeiros da região raiana dos territórios do Sabugal esta é uma obra de ficção e qualquer semelhança com nomes de pessoas, factos ou situações terá sido mera coincidência (ou talvez não!)
José Carlos Lages
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