No passado dia 24 de Março, um grupo de terroristas, autodenominado Al-Shabab, que se reivindica do Islão e da Jihad, atacou e ocupou a vila de Palma, no norte da província de Cabo Delgado, Moçambique, junto à fronteira com a Tanzânia. O referido ataque causou a morte de dezenas de pessoas indefesas e levou a que milhares de residentes tivessem de fugir das suas casas, agravando uma crise humanitária que, desde o início da guerrilha, já atingiu mais de 700 mil pessoas deslocadas e causou cerca de 2600 mortos.
O porta-voz das Nações Unidas para a Coordenação dos Assuntos Humanitários, Jens Laerke, descreveu a situação em Palma como «um horror absoluto».
Por sua vez, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) deu conta de que «as famílias tentaram refugiar-se na mata, enquanto mais de cem pessoas deslocadas viajaram de barco da vila atingida para a cidade de Pemba, a sul».
O porta-voz do ACNUR, Andrej Mahecic, relatou que houve casos de «pessoas que foram expulsas de suas casas ou que fugiram, outras que foram mortas ou mutiladas, casas que foram saqueadas e queimadas , mulheres e meninas que foram sequestradas, violadas e submetidas a outras formas de violência», acrescentando que «também há relatos de recrutamento de crianças à força para os grupos armados insurgentes».
Relatos recentes dizem que dos 75 mil habitantes de Palma, apenas algumas centenas continuam na vila. Nas ruas, vêem-se corpos em decomposição, vítimas da guerra que os militares se apressam a cobrir. Há marcas da destruição por todo o lado, casas, alojamentos hoteleiros, lojas e outros lugares de comércio… Totalmente queimado, até o centro de saúde foi alvo do ataque jihadista lançado pelo Al-Shabab. Por outro lado, prossegue o êxodo da população, por via marítima, em direção à cidade de Pemba, onde os deslocados da guerra se vão amontoando em condições de enorme precariedade.
Recuando no tempo, importa dizer que as primeiras manifestações deste movimento terrorista em território moçambicano ocorreram há já alguns anos, na zona noroeste da Província de Cabo Delgado tendo sido protagonizadas por jovens moçambicanos (conhecidos na província pelo nome de mashababos), radicalizados principalmente em madraças e mesquitas da Arábia Saudita.
Após episódios esporádicos de violência, o movimento Al-Shabab reforçou os seus contactos com correligionários no sul da Tanzânia e, a partir de 2017, concentrou a sua atividade criminosa no norte da Província de Cabo Delgado, tendo passado a atormentar as populações com inaudita barbárie pautada por ataques contra pessoas indefesas, com recurso a pilhagens, a decapitações, a violações e outros atos de violência. De acordo com a Organização Internacional para as Migrações (OIM), desde o início do conflito, mais de 700 mil pessoas (das quais mais de metade são crianças) foram forçadas a fugir da guerra que até hoje já causou 2600 mortos.
Nos últimos anos, o Al-Shabab tem vindo a crescer substancialmente e estima-se que sejam mais de 3000 os militantes a combaterem em seu nome, maioritariamente moçambicanos da Província de Cabo Delgado, mas também combatentes oriundos de outros países africanos, em particular da Tanzânia e da Somália, focos de atividade jihadista em África onde já existem redes há vários anos.
Qual a natureza e objetivos deste movimento terrorista?
A resposta a esta pergunta não está, por ora, cabalmente esclarecida. O que se sabe é que o Al-Shabab é formado por moçambicanos radicalizados, aos quais se foram juntando jovens sem emprego, ressentidos com as suas condições e expectativas de vida e que se deixaram cativar pelo banditismo armado. Mas as reais exigências do Al-Shabab ainda não são inteiramente conhecidas. A tese que, até agora, parece prevalecer é que, apoiado por combatentes estrangeiros conotados com o Estado Islâmico que pretendem impor pela força práticas literalistas do Islão, o movimento se propõe substituir, pelo uso da força, o atual sistema da sociedade moçambicana pela implantação do islamismo radical da sharia.
Contudo, ao forçar as comunidades locais a assumir preceitos de vida que vão contra as respetivas tradições e cultura, e ao perturbar a paz e o desempenho normal das atividades que proporcionam o ganha pão dos seus habitantes, o Al-Shabab não tem encontrado a adesão dessas populações, razão pela qual tem vindo a assumir atitudes cada vez mais violentas e indiscriminadas contra civis, muçulmanos e não-muçulmanos, de várias etnias: muani, maconde e macua, na sua maioria. Ou seja, os mashababos não olham a distinções étnicas ou religiosas e o seu objetivo parece consistir em forçar as populações a obedecerem a normas e a comportamentos contrários às tradições culturais e religiosas existentes em Cabo Delgado. Na verdade, a submissão violenta das mulheres, a escravatura dos não-muçulmanos ou dos chamados «apóstatas» e a decapitação, como forma de exemplo ou de punição, são práticas que não fazem parte das tradições ancestrais, religiosas (em particular, a muçulmana e a cristã) e culturais que prevalecem nessa província do norte de Moçambique.
Ainda assim, o crescimento exponencial do Al-Shabab tem levantado muitas questões sobre a origem das armas usadas pelos seus militantes em Cabo Delgado, bem como sobre as suas formas de financiamento.
Quanto ao armamento, uma parte significativa tem, ao que se julga, sido conquistada pelo Al-Shabab durante os ataques contra as forças de segurança moçambicanas. Há, contudo, suspeitas de que o movimento disponha também de armamento proveniente do Médio Oriente que lhe é fornecido, não só através da fronteira com a Tanzânia, mas também por via marítima.
No que respeita às formas de financiamento, há quem considere que, além das pilhagens efetuadas nos ataques às comunidades locais de Cabo Delgado, o mesmo poderá estar igualmente relacionado com o tráfico internacional. O tráfico de pedras preciosas, como os rubis explorados em Montepuez, o contrabando das madeiras preciosas com destino à Ásia controlado por máfias chinesas e vietnamitas, a venda de marfim e, principalmente, o tráfico de droga, particularmente heroína, poderão representar, já no presente, mas sobretudo num futuro próximo, uma parte relevante das receitas que poderão contribuir para que o Al-Shabab continue a crescer. Há mesmo quem antecipe que o prolongamento da guerra em Cabo Delgado poderá propiciar ações de banditismo financiado, quer pela pilhagem desses recursos, quer pela cobrança de taxas impostas aos próprios traficantes por este movimento terrorista.
Tal dependerá, não somente da evolução da situação militar, mas também da governação e da satisfação, ou não, das expectativas das populações de Cabo Delgado decorrentes dos rendimentos expectáveis da exploração dos seus recursos naturais, com destaque para a exploração dos jazigos de gás natural.
De facto, um elemento de análise que se afigura relevante sobre as causas e consequências do presente conflito tem a ver precisamente com a exploração das reservas de gás natural na Província de Cabo Delgado. Na verdade, apesar de a descoberta de gás natural ser anterior à eclosão da guerra, a dimensão das reservas e a presença de uma dezena de empresas multinacionais e de países interessados (França, Itália, Índia, China, Coreia do Sul, Tailândia, EUA, Portugal, Japão), alguns deles já envolvidos nos trabalhos de pré-exploração, constituem fatores que ajudam certamente a explicar a visibilidade internacional que nos últimos tempos tem vindo a ser dada à situação dramática de Cabo Delgado atrás descrita. A verdade é que os projetos de exploração em curso têm sido afetados pela guerrilha, quer em termos de condições e calendários dos trabalhos quer, em última instância, da viabilidade desses projetos, como de resto se tornou evidente com o presente ataque a Palma que originou a paralisação dos trabalhos aí desenvolvidos pela multinacional francesa TOTAL, num megaprojeto de exploração de gás considerado como o maior em todo o continente africano. Aliás, terá sido a morte de mais de uma dezena de cidadãos estrangeiros que trabalhavam nesse projeto, que teve o condão de ter chamado a atenção da comunidade internacional para o drama humanitário que hoje se vive nesta província de Moçambique.
Dito isto, tudo indica que o conflito está para durar e, tal como afirmou o porta-voz da ACNUR, Babar Baloch, numa recente conferência de imprensa, admite-se que «o número de deslocados desta guerra poderá, nos próximos meses, ultrapassar um milhão, se os ataques terroristas não pararem».
Aliás, caso as condições de segurança na região não mudem significativamente, receia-se que o conflito venha alastrar em direção ao sul da província, havendo analistas que prevêem que os grupos armados do Al-Shabab poderão, dentro de alguns meses, atacar a cidade de Pemba, capital provincial. Entre os alvos possíveis nesta cidade poderiam estar hotéis, instalações governamentais, funcionários e ativos de ONG’s, da Igreja Católica e das Nações Unidas, um aeroporto e um porto de contentores e até a equipa e a logística da mutinacional francesa TOTAL anteriormente referida.
Infelizmente, a realidade encarregou-se de demonstrar que o Estado moçambicano não tem condições para enfrentar o terrorismo jihadista apenas com as forças de segurança de que neste momento dispõe. A resposta do governo tem sido fraca até agora, sobretudo devido à falta de coordenação e à ausência de suficientes capacidades operacionais da polícia e dos militares moçambicanos envolvidos no conflito. O exército está mal preparado em termos de contraguerrilha face aos combatentes do Al-Shabab. De facto, apesar da intenção proclamada pelo governo de ser capaz de controlar a situação, o ataque à vila de Palma constitui o exemplo que faltava para mostrar o contrário.
Assim sendo, o entendimento regional e a ajuda securitária internacional são soluções que podem ajudar Moçambique a enfrentar a situação. A hesitação que o governo moçambicano tem revelado em aceitar ofertas de apoio militar estrangeiro, inclusive da União Africana, da Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral, ou de países amigos como Portugal, não tem sido fácil de entender e suscita natural perplexidade. Com efeito, Moçambique só terá a ganhar em aceitar a ajuda internacional, designadamente em termos do aconselhamento de operações, de fornecimento de armamento, de logística, de formação de unidades especializadas em contraguerrilha, ou de vigilância aérea e de vigilância marítima na costa do Oceano Índico, a fim de estancar os fornecimentos de armas e as deslocações dos terroristas.
Neste domínio securitário, uma cooperação militar e de segurança entre Moçambique e a Tanzânia poderia, por outro lado, revelar-se um meio particularmente eficaz para combater os grupos de terroristas que operam em ambos os países, assegurando o controlo transfronteiriço da entrada e saída dos guerrilheiros, bem como do seu reabastecimento.
Uma questão final tem a ver com a ajuda humanitária às populações de Cabo Delgado onde, apesar da riqueza potencial da província em termos de recursos naturais, a pobreza é enorme e as pessoas vivem em condições muito precárias, apresentando os mais pobres indicadores socioeconómicos e de desenvolvimento humano, um elevado nível de analfabetismo e um forte sentimento de insegurança e de incerteza face aos dramas humanitários causados pela tripla crise da pandemia em curso, da fome e da guerra.
Em Pemba, cidade para a qual continuam a confluir constantemente milhares de refugiados escapados à guerra, são incontáveis as necessidades em alimentação, saúde e alojamento. Mas também em integração de jovens e de adultos que, tendo perdido tudo o que tinham, necessitam de ajuda para desenvolver novas atividades que lhes permitam sobreviver em terra desconhecida. Existem é certo na cidade algumas ONG’s, ligadas designadamente à Igreja Católica e ao Conselho Islâmico de Moçambique, com capacidade instalada para o desempenho das respetivas missões humanitárias, mas a que faltam os indispensáveis recursos financeiros. Há, por isso, que procurar trabalhar com elas e ajudá-las de forma proativa.
A ONU está presente no terreno. Mas espera-se igualmente que a União Europeia, que ao longo de décadas se tem distinguido pela ajuda humanitária aos países do continente africano, intensifique neste caso o seu apoio aos milhares de deslocados da guerra e, em particular, às situações de fome, subnutrição e acolhimento em geral das populações martirizadas de Cabo Delgado.
Para tanto, Portugal tem um papel central a desempenhar, neste primeiro semestre de 2021 durante o qual lhe compete assegurar a Presidência do Conselho da União.
Um papel que, para bem dos nossos irmãos moçambicanos, não pode ser adiado, nem desperdiçado.
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«Portugal e o Futuro», opinião de Aurélio Crespo
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Julho de 2020.)
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