Há tempos fomos recolher depoimentos de um Arraiano, Manuel José Fernandes, que no dia 10 de Janeiro, de 1948, nasce na freguesia de Bismula, concelho do Sabugal, distrito da Guarda, fruto do amor conjugal de Maria da Piedade Alves Lavajo e de José Maria Fernandes Monteiro. É esse Manuel José Fernandes, o guia de várias histórias ao longo da sua vida, que têm o condão de serem verídicas e contadas. Esta crónica é a segunda de três, de um Bismulense, um verdadeiro triunfador da vida. (Quinta história.)
(Continuação.)
Histórias de um triunfador na vida
Em Nampula, Moçambique, foi colocado no Quartel-General, no Centro Cripto, onde a missão era passar as mensagens de claro para código e de código para claro (tradução) num trabalho de 24 horas seguidas, seguido por um descanso de 48 horas.
Aconteceu, numa noite, uma avalanche de mensagens confidenciais e relâmpago a pedir evacuações de feridos e de alguns mortos. Com três militares de serviço quase não havia tempo para respirar, só por volta da uma da manhã parece que a guerra tinha acabado e voltou tudo ao normal.
Perante estes graves e sangrentos acontecimentos, resolveu escrever uma carta à sua namorada (hoje sua esposa), contando-lhe que tinha passado uma noite de autêntico inferno, utilizando a palavra encriptada «gaivota», que significava ferido, prudentemente não utilizando a que correspondia ao significado de morte. Colocou a carta na caixa do correio e, passadas 48 horas, apresentou-se ao oficial de dia para receber uma carta com a senha para voltar ao serviço. Estava neste ato de apresentação quando aquele oficial fez um telefonema e, cinco minutos depois, apareceu um jipe da Polícia Militar com um cabo e um soldado para o transportarem à delegação da DGS (PIDE) em Nampula, com a justificação de que era uma questão de rotina.
Quando chegou à delegação da PIDE foi bem recebido por um agente daquela polícia e perguntou o porquê da sua deslocação àquela delegação. Disseram-lhe que era apenas rotina, mas começou por fazer algumas perguntas banais até que de repente mudou de discurso e mostrou a carta que 48 horas antes tinha metido no correio dirigida à namorada, onde estava sublinhada a palavra «gaivota». Perguntas e mais perguntas, às quais respondia que não tinha escrito aquilo com qualquer intenção. Continuava a dizer que tinha sido apenas uma desatenção e que não tinha passado disso. Por volta das onze horas da noite, depois de mais de doze horas de má estadia naquelas instalações, mandaram-no embora. Não conseguiram provar nada, mas ficou a saber que tinham tido acesso a todas as cartas que escrevera e mandara para a Metrópole.
Perante esta situação estranha, nunca mais entrou ao serviço no Centro Cripto, com a agravante de, sem Unidade Militar, se apresentar todos os dias por volta das nove horas da manhã na Companhia de Adidos, no Quartel General. Registava a sua presença, perguntava ao Sargento Ajudante da secretaria se já tinha colocação e a resposta era sempre negativa. Foram dias muito difíceis em tempos militares.
Nestes tempos de forçada «ociosidade militar», andava a passear por Nampula e passou junto à Escola Industrial e Comercial de Nampula. Resolveu entrar para se informar se era possível matricular-se para realizar o exame de caligrafia. A resposta foi afirmativa. Tinha de fazer um requerimento, deram-lhe uma minuta para preencher, aguardar o deferimento, pagar uma propina de cem escudos. Aproveitou aquela ida para obter esclarecimentos sobre a frequência do Curso dos Complementares. Tinha que ter o Curso Completo, fazer um requerimento conforme a disciplina e o processo era igual ao pedido antecedente. Por cada disciplina requerida teria de pagar 100 escudos. Passadas três semanas voltou àquela Escola e o requerimento já tinha sido deferido. Fez exame de caligrafia, o resultado foi: a letra inglesa, 15 valores; a letra francesa, 4 valores. A média do exame foi 9,5 valores. Com nota mínima 10 valores, obteve a partir desse dia o Curso do Comércio.
A única maneira de ocupar o tempo era estudar e assim conseguiu arranjar livros sobre as várias disciplinas dos Complementares. Estudava e ia propondo-se a exames. Nesta altura recebeu, vindo da Guiné, um vale de correio no valor de dois mil e quinhentos escudos, enviados pelo seu irmão, Alferes Miliciano no Batalhão de Engenharia na Guiné, que lhe ajudou a pagar as propinas.
A maioria dos professores que presidiam aos exames era constituída por militares ou esposas desses mesmos militares, e, através das aulas, conheceu numa professora, natural de Setúbal, que pelo casamento foi viver para Évora com um Capitão Miliciano, amigo do Tenente Coronel Chefe dos Serviços de Justiça no Quartel General.
Pelo facto de viver em Setúbal, criou uma empatia com aquela professora, contou-lhe toda a história da vida militar, e ela interessou-se pelo seu caso. Prometeu que iria falar com o marido, a fim deste ter uma conversa com aquele Tenente Coronel, a ver se poderia resolver a sua estranha situação militar. Na verdade, aquela samaritana e solidária professora, que não o conhecia, não só ficou sensibilizada com a injustiça de que estava a ser vítima, como se comprometeu a tentar encontrar uma resolução para o problema. Passados dois meses foi colocado na Chefia de Serviços de Transportes na Secção da Via Aérea.
Ontem, como hoje, ainda há pessoas que se preocupam, não ficam indiferentes e procuram reparar as muitas injustiças que diariamente se praticam. Infelizmente são muito poucas… o dinheiro ainda compra muitas consciências.
A nova missão militar que lhe foi atribuída consistia na requisição ao Exército dos Transportes Aéreos, à Força Aérea e a DETA, uma companhia civil de Moçambique, para transportar correio, víveres e pessoas. Estes aviões tinham sempre um Delegado na Chefia de Transportes, que tratava de toda a documentação relacionada com o transporte, centralizada no Aeroporto de Nampula, para vários destinos de Moçambique. Como era «checa» (novato), na Chefia dos Transportes (em outras Províncias Ultramarinas eram chamados de maçaricos), foram-lhe atribuídas as piores zonas e normalmente viajava no avião Noratlas. Passados uns tempos veio outro «checa» para o seu lugar e escusado será seria dizer que passou para melhor lugar, passou para os Boeings da DETA, que faziam viagens de Nampula para Lourenço Marques, Beira e Tete, e outras localidades, realizando uma ou duas viagens por semana.
Quanto à frequência das aulas conseguiu acabar os Complementares em Janeiro de 1972, permitindo-lhe a possibilidade de um dia se candidatar à Universidade, uma vez que aquele diploma também podia passar da via profissionalizante para a via do ensino.
No dia 30 de Março de 1972 embarcou na cidade da Beira (Boeing da TAP) rumo ao aeroporto de Figo Maduro em Lisboa, onde chegou por volta das dez horas da noite, sem familiares à espera. Os tempos eram difíceis em termos económicos e sociais. Com a maior rapidez foi fazer o espólio ao RAL1, em Lisboa, e regressar ao seu Pátrio Sado.
Refere que o serviço militar obrigatório, apesar de algumas vicissitudes, lhe deixou grandes saudades de camaradagem, solidariedade, conhecimento de outras culturas, valor à vida, valorização humana e escolar.
Numa família constituída por dez irmãos, seis deles rapazes, cinco estiveram no Exército e um foi Paraquedista na Força Aérea. Quatro foram mobilizados para a Guerra do Ultramar, dois na Guiné, dois em Moçambique. Com o 25 de Abril, já não se concretizou a última mobilização.
(Continua.)
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«Aldeia de Joanes», crónica de António Alves Fernandes
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Março de 2012)
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