Há tempos fomos recolher depoimentos de um Arraiano, Manuel José Fernandes, que no dia 10 de Janeiro, de 1948, nasce na freguesia de Bismula, concelho do Sabugal, distrito da Guarda, fruto do amor conjugal de Maria da Piedade Alves Lavajo e de José Maria Fernandes Monteiro. É esse Manuel José Fernandes, o guia de várias histórias ao longo da sua vida, que têm o condão de serem verídicas e contadas. Esta crónica é a segunda de três, de um Bismulense, um verdadeiro triunfador da vida. (Quarta história.)

Nas histórias anteriores fizemos referências à vida do contrabando, das feiras arraianas, da ida para Lisboa do nosso triunfador da vida. Neste, vamos escrever sobre a ida para terras sadinas.
O seu pai, José Maria Fernandes, sacristão na Igreja de Santa Maria, actual Sé de Setúbal, tinha conhecimentos com o dono de várias padarias e conseguiu um contrato de trabalho numa padaria, sita no Largo da Misericórdia. Trabalho muito difícil, principalmente no verão, em que entrava às duas da manhã e saia às dez, com um salário semanal de 70 escudos e um pão por dia, no valor de 17 tostões; quando não precisava trocava-o por aquele valor.
O trabalho na padaria consistia em ajudar o fogueiro a alimentar o forno com lenha, aprender a amassar pão e, antes de sair às dez da manhã, ia levar um cesto de carcaças ao Café Brazileira, na Praça do Bocage, um ex-libris da cidade.
O proprietário desse café era de Pontevedra (Galiza), de nome José Fernandez Dias, conhecido por todos os clientes pelo Senhor Freitas, um homem de uma grande humanidade e de um coração do tamanho do mundo.

Numa das ocasiões em que foi entregar as carcaças ao Café Brazileira, o senhor Freitas reparou e estranhou que aparecesse com um olho negro. Quis saber o que tinha acontecido. Manuel Fernandes faltou à verdade, disse que tinha caído, quando o que aconteceu fora o fogueiro ter-lhe dado com a pá do forno, por amassar mal os papos secos. E insistiu sobre o que tinha acontecido, ao qual replicou que tinha caído, mas o Senhor Freitas não acreditou.
Um dia, na entrega dos papos secos, no Café Brazileira, perdeu o dinheiro e contou ao patrão da padaria o que lhe tinha acontecido. A resposta foi pronta: «Não há problema, descontas no salário.» Foi ter com o Senhor Freitas e contou-lhe o que tinha acontecido. Este respondeu-lhe: «Diz ao teu pai para vir falar comigo.»
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Sem perder tempo, nesse mesmo dia lá foi com o seu pai até ao Café Brazileira para falar com o Senhor Freitas, que teve com ele uma longa conversa, terminando com esta proposta: «O seu filho vem trabalhar para o Café, necessito de um jovem para pequenos trabalhos, fazer alguns recados… Já o estudei, é activo e vai dar conta do recado.»
O ordenado mensal era de 250 escudos, todos os dias tomava o pequeno-almoço e lanche no café, com o seguinte horário: entrada às oito da manhã e saída ao meio dia. À tarde entrava às 16 horas e saia às 20 horas. Também o informou de que iria receber boas gorjetas. O pai esteve totalmente de acordo.
Manuel Fernandes estava a entrar na Universidade da vida para fazer a sua primeira licenciatura.
Quando no dia seguinte chegou ao café já estava o Senhor Freitas à espera e levou-o para uma salinha que existia junto à sala de jogo, para lhe explicar o que pretendia. No decorrer desta apresentação, fez-lhe uma pergunta que nunca mais na vida esqueceu… «Tu sabes quais são as duas coisas em que não se deve mexer?» Olhou para ele e respondeu-lhe… «Não faço ideia», e ficou a aguardar a explicação… «Então eu vou dizer-te, uma na gaita porque quando lhe mexemos ela cresce, e a segunda é o dinheiro, que quando lhe mexemos desaparece.»
O Café Brazileira tinha um armazém na Rua do Bocage onde se guardava o material para funcionamento do mesmo, tinha a missão de os trazer, fazia pequenos recados aos fregueses e sempre recebia umas gorjetas, ainda ajudava no balcão. A verdade, o trabalho agradava ao Sr. Freitas e estava encantado com a sua maneira de actuar.

O Café Brazileira era um dos mais famosos de Setúbal, frequentado por quase todos os grandes empresários da Região, batoteiros, vigaristas, pessoas sérias, prostitutas, chulos, jogadores de futebol, enfim, gente boa e honesta e gente duvidosa.
Situado numa zona privilegiada, na Praça do Bocage, possuía uma grande sala onde eram servidos cafés, pequenos almoços, lanches, etc… Esta sala tinha as portas principais para a Praça do Bocage e as laterais para a Rua do Bocage e outra sala com porta mais pequena para a Praça do Vate Setubalense. Nesta sala havia uma pequena casinhota onde se fazia o registo do totobola. Esta sala de jogos só funcionava a partir das duas da tarde, com os dados de dominó, damas, cartas. O entusiasmo do jogo era tão forte que devia fechar às duas da manhã, mas o seu encerramento prolongava-se até às quatro da manhã.
Assistiu a muitos episódios e histórias que ali se passaram, davam para um grande livro e para um filme. Um dia estava à porta principal do café e reparou que a senhora de um grande industrial da zona de Palmela se dirigia para o café onde estava o marido a lanchar com a amante. Pensou na grande sarilhada, e foi ao encontro da dita senhora, contando-lhe uma história de fazer chorar as pedras da calçada. O empresário tomou conhecimento e recambiou a amante por uma das portas laterais que davam para a Rua do Bocage, rumo ao à Av. dos Combatentes. Entretanto, a esposa chegou junto marido, estava tudo normal e lancharam.
O marido não a levou a casa, alegando que tinha uma importante reunião em Setúbal e também a recambiou num táxi para Palmela. Chamou-o e deu-lhe vinte escudos. «Eu não vi nada, eu não dei de nada!» O empresário ficou descansado.
Um dia, em pleno mês de Julho, estava o nosso Triunfador Bismulense, no horário das oito da noite às duas da manhã. Por volta da meia noite apareceu-lhe um casal alemão com uma filha, falando em espanhol, por volta dos três ou quatro anos, à procura de uma pensão onde pudessem descansar (nesta altura em Setúbal só havia o Hotel Esperança, a Pensão Setubalense e a Pensão Avenida, propriedade do dono do Café Brazileira).
Na pensão Avenida havia sempre um quarto de casal reservado para no caso de aparecer algum amigo do Senhor Freitas. Ligou para a Pensão, falou com a senhora da gerência e informou que estava ali um casal alemão, que falava espanhol, que era amigo do dono da pensão (o que não era a verdade), com uma criança mais ou menos de três anos de idade. A senhora resolveu o problema destes desconhecidos turistas alemãs.
No outro dia às sete da manhã lá estava à porta do café para falar com o dono da pensão. Levou um grande raspanete, mas acabou por compreender a sua atitude quando lhe disse que ficou sensível quando viu a criança. O Senhor Freitas disse… «Tu tens bom coração, és mesmo assim.»
Aproveitou para dar uma ajuda no balcão ao seu colega, em virtude do muito movimento e por volta das nove horas ligaram da pensão para saber se alguém levava o pequeno almoço para o casal alemão. Foi incumbido dessa missão.
Por volta das onze horas o casal alemão dirigiu-se ao café para falar com o Senhor Freitas, agradecer e solicitar se havia possibilidades de ficar mais três dias, porque queria conhecer toda a região, o que veio a acontecer.
No final das miniférias, este casal alemão veio ao café agradecer ao Senhor Freitas, despedir-se com um grande abraço e uma nota de 20 dólares ao empregado Manuel Fernandes. O dono do Café Brazileira perguntou: «Então deram-te uma boa gorjeta?» E um pouco desiludido disse-lhe: «Deram-me esta nota estrangeira.»
Ripostou: «Olha lá, rapaz, tu tens aí um dinheirão, vai já ali ao banco trocá-lo.» Foi ao banco e aconteceu uma situação burlesca, quando se dirigia ao caixa do banco. Apresentou a nota para cambiar e a primeira pergunta foi a quem é que tinha roubado aquela nota e pô-lo na rua.
Dirigiu-se ao café e contou o sucedido ao Sr. Freitas. Este dirigiu-se àquele ao banco exigindo a presença do gerente e, furioso, disse: «Não admito a ninguém que chame ladrão a um empregado meu! É como se me chamassem a mim.» O gerente pedia desculpas, que tinha sido um mal-entendido e exigiu que o caixa pedisse desculpa. O gerente disse que iria fazer o câmbio e não cobrava qualquer taxa. O Senhor Freitas, apesar destas boas vontades e desculpas, exigiu que o caixa do Banco fosse transferido para outra agência, o que veio a acontecer. Recorda-se que o câmbio do dólar nessa época era de 18,12 escudos.

O Bismulense Manuel Fernandes aos 14 anos matriculou-se na Escola Industrial e Comercial no Curso Geral do Comércio Noturno.
Quando chegou ao 4.º Ano do Curso Comercial começou a ter pequenos conflitos com os seus colegas, que faziam o turno da noite, pois ele só fazia o turno da noite durante as férias escolares. Entendiam que não era justo e foi falar com o Senhor Freitas.
No final desta reunião, entendeu-se sair e o Senhor Freitas arranjou-lhe emprego na Sucursal da Renault em Setúbal, que ficava na Av. Luiza Tody, uma grande oficina, indo trabalhar para o armazém das peças.
Quando fez 18 anos foi trabalhar para os Serviços Municipalizados de Setúbal como cobrador de água e luz, onde esteve até ir para o serviço militar em Maio de 1969.
Com ordem de marcha, apresenta-se para serviço militar obrigatório, em Caçadores 8 em Elvas, não frequentando o Curso de Sargentos Milicianos pelo facto de não ter o Curso Comercial completo, faltava-lhe a disciplina de caligrafia.
Com a recruta em Elvas foi para o RAL4, em Leiria, tirar a especialidade de Escriturário e, no final, foi colocado no R11 em Setúbal, onde foi mobilizado para Moçambique.
No dia 2 de Fevereiro de 1970 embarcou no Vera Cruz, no Cais de Alcântara, em Lisboa, e no dia 28 de Fevereiro chegou a Nampula, Moçambique.
(Continua.)
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«Aldeia de Joanes», crónica de António Alves Fernandes
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