Na saga dos Picas trago hoje a mote mais um poeta da pedra. O Mestre José da Silva era um Pica robusto e de «pulsinho» muito forte. Ele próprio o asseverava…

No baralhado dos irmãos, exercitou, desde menino , o uso do pico transformando milagrosamente, desconformes calhaus em pedra alindada.
Os imperativos laborais, de tão prematuros, apenas lhe permitiram o certificado da terceira classe. Porém, nas contas, ninguém lhe passava a perna.
Ganhou, de garoto, a obrigação de partir cedo, de madrugada, para a obra. Seguia a pé, entre os manos e, se a lonjura o justificasse, por lá pernoitariam todos chamando cama a duas mantas estendidas sobre palha.
A evolução do tempo trouxe, aos Picas, o vislumbre de algum poder económico e, nos anos cinquenta, já eles rolavam bicicletas dispostos a polir pedra, de sol a sol.
Anos mais tarde, o Mestre Silva iniciou, a meias com o irmão Manel, uma pequena empresa de construção que, por ditames de mercado mas não de coração, se virou para cimento e blocos.
Nessa altura , já os velocípedes haviam sido encostados. A complexidade do trabalho exigia, agora, maquinarias e furgonetas de transporte. Contudo a paixão pela formatação do granito jamais afrouxaria continuando a vir a tema em qualquer conversa ou circunstância.
Esclarecia o Mestre Silva sem conseguir evitar notório embargo de voz:
– Aqui, devia levar um pilar em pedra aparelhada e não esta tralha em cimento. Metam-lhe, ao menos, ferro com fartura não venha esta porcaria ao chão. Quem paga manda mas eu sei bem como deveria ser feito o trabalho.
As chalaças nasciam-lhe no âmago e soltava-as a toda a hora, até nos momentos mais cerimoniosos. Segundo ele, os gracejos adoçavam vidas e labutas.
À época, a rapaziada tinha o hábito domingueiro de comparecer na missa, à porta da igreja alegando falta de espaço no interior. Certo domingo, de proximidade natalícia, plantou-se o costumado magote de mancebos, à porta mor, rodeando o Mestre Silva que, casado e pai de filhos, ainda liderava as hostes. À hora do peditório, o sacristão desceu a coxia, bandeja na mão, rogando, em alta voz, as oferendas dos fiéis:
– Esmola para Nosso Senhor.
O Mestre Silva, desconfiado da debilidade das nossas jovens carteiras, olhou-nos num olhar circular e lançou-nos calmamente:
– Não vos apoquenteis, rapaziada.
Acto contíguo, sacou da carteira uma nota de cem escudos e anunciou solenemente:
– Eu pago por vós todos!
Mas, no prosseguimento da celebração, o Padre voltou a preceituar:
– Segue-se, agora, segundo peditório. Será para o Menino Jesus.
O Mestre Silva entendendo a menção como uma reincidência abusiva bradou da porta para o altar em tom arreliado:
– Para o Menino Jesus? Essa está boa! Olhe, senhor Padre, eu já paguei ao chefe. E, com garotos, não quero conversas.
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«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
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