:: :: JOSÉ CARLOS LAGES :: :: No primeiro episódio o António Emídio «apresentou-nos» a família do Luís do Sabugal quando este se preparava para ingressar no Outeiro de São Miguel. Seguiram-se o Fernando Capelo, o José Carlos Mendes, o Ramiro Matos, o António José Alçada, o Franklim Costa Braga, o António Martins, o António Alves Fernandes, o Joaquim Tenreira Martins e a Georgina Ferro. Esta semana o José Carlos Lages recorda Lourenço Leitão e as sensações metafísicas dos cartões das rifas, do Upita, da Telda, do Poço e do Teclado… (capítulo 1, episódio 11.)
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HISTÓRIAS DA MEMÓRIA RAIANA
Capítulo 1 – Episódio 11
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EM MEMÓRIA DE LOURENÇO LEITÃO
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Dong!… Dong!… Dong!… Dong!… Dong!…
O toque de defunto do sino do campanário ritmava a saída do caixão pela portada principal da Igreja Matriz de Ruivós, transportado por seis homens, com o irmão que tinha casado na Bismula à frente. A fachada, caiada de branco, com a janela do coro de oito janelos no caixilho de madeira, emoldurada em granito trabalhado com relevo onde reina a concha de vieira, símbolo dos caminhos dos peregrinos de Santiago, destacava-se naquele ambiente escuro e triste.
Ajeitaram-se os véus, os xairéis e os xailes negros das mulheres e os chapéus de aba dos homens porque, do céu, começaram a cair os primeiros pingos de chuva gelada! Por debaixo do campanário, no aidro e no largo fronteiro à igreja um mar de gente nunca visto naquela aldeia assistiu à missa e esperou a saída do cortejo fúnebre em direcção ao cemitério. Nos currais e nas lojes das casas da aldeia aguardavam pelos donos, enquanto mastigavam feno e umas tarrábias, centenas de cavalos e burros.
A multidão abriu alas para deixar passar as três opas negras com a cruz, as insígnias e o estandarte das Almas seguidas pelo senhor arcipreste padre José Luís Antunes que orientou espiritualmente os fiéis daquela terra entre 1919 e 1970.
O som do sino cada vez mais ao longe foi sendo substituído pelo murmúrio da ladainha da reza do terço ao som das botas calcando a lama do chão laburdo. Ao Largo da Fonte a paragem para uma vénia do sacerdote à secular alminha granítica à beira do caminho foi aproveitada para revezar os homens da urna. Um pouco antes o choro tinha aumentado de intensidade à passagem pela casa de família. Mas o andamento daquela negra massa humana que se estendia a perder de vista foi estugado porque a chuva caia com cada vez mais intensidade.
Os acompanhantes vieram de todas as terras em redor mas em especial os contrabandistas do Soito, Fóios e Quadrazais que idos e vindos pelos caminhos de Valdeiras em direcção à ponte de Sequeiros e ao comboio da Cerdeira sempre paravam na casa do Lourenço onde nunca lhes faltava lume para se aquecerem, um copo de vinho na adega, uma côdea e uma chouriça ou queijo de ovelha do maior rebanho da região. Para o Tó Serôdio de Aldeia Velha havia sempre guardado um pouco de soro dos queijos que ele dizia não haver igual em mais lado nenhum.
No cemitério de São Paulo, padroeiro de Ruivós, foram feitas as últimas encomendações. A viúva Elvira, as filhas Teresa, Ilda e Gracinda e o filho José despediram-se num choro lancinante e o caixão desceu à terra. Tinha terminado a sua curta vida terrena… Lourenço Leitão.
E assim Elvira Gonçalves que grávida esteve por nove vezes ficou viúva e com quatro filhos (dois deles menores) para criar.
Estávamos em Fevereiro de 1946. A tragédia tinha começado quatro meses antes. Lourenço Leitão era dos mais abastados agricultores de Ruivós e mesmo das aldeias em redor com um dos maiores rebanhos de ovelhas da região.
Um dia regressava do mercado das vacas de Alfaiates pelo caminho de Aldeia da Dona e cruzou nos lameiros do Fontanhão com o regedor António Gonçalves. Palavra puxa palavra e após acessa discussão ficou a saber que, por influência do Ti Armandinho Lindo, o regedor tinha resolvido mudar o local onde ia ser construída a casa da escola. Passava do lameiro do Lindo no começo da estrada para a Ruvina para um chão do Lourenço no caminho para Vale das Éguas. Naquele tempo (como agora) o Estado não pagava o devido valor pelos mesmos e naquele caso ficou a saber que iria mesmo reverter a custo zero.
Lourenço Leitão, homem sério, para quem nos negócios o alboroque era apenas a confirmação da palavra de honra e do aperto de mão, sentiu-se enganado e vigarizado. Ao chegar a casa a comoção apoderou-se dele. Deitou-se para nunca mais se levantar. Assim ficou… entrevado durante quatro meses. E embalado ficou com os terços que as mulheres da aldeia rezaram na sala encostadas à cortina que escondia o pequeno quartinho onde só cabia a enxerga de palha. Deixou de comer e faleceu poucos dias depois.
Mas uma desgracia nunca vem só… Como havia filhos menores naquele tempo era necessário fazer e pagar um «inventário de herdeiros» de muitas centenas de réis. O casal Lourenço e Elvira tinham uma casa rica onde não faltavam os produtos da lavoura mas, naquele tempo, no final da grande guerra o dinheiro não valia nada. E tudo se precipitou…
O Manel Zé da Ruvina, moço e pastor da casa desde os 14 anos de idade, foi chamado para lhe dizerem que ia ser necessário vender o rebanho de ovelhas e as vacas. «E agora que fazemos com a Farusca, com o João Moco e com o Tejo?», perguntou o pastor… «Não temos como os manter», disse-lhe a Ilda. E todos choraram adivinhando mais uma tragédia para a grande cadela preta e para os fiéis e enormes cães brancos que guardavam o rebanho. E a verdade é que as mulheres da casa – a mãe Elvira, e as filhas Teresa, Ilda e Gracinda – nunca mais na vida quiseram ter cães de companhia.
E assim o Manuel Zé lá voltou com 18 anos para a Ruvina. «Se por lá ficasse mais um tempo ainda pagava lá o vinho! Assim foi vir e ir para a tropa!», recordou um dia mais tarde em conversa com a sua neta Lydie que anda por terras da Suíça.
– Então Lourenço? Já estava em cuidados. Porque demoraste tanto? Já passa da meia-noite…
– Ó mulher! Estive na adega a enredar e dar de beber aos guardas! Mesmo assim não foi fácil ao Jeremias e ao Quim Coxo abalarem com os cavalos e o carrego pelo chão do reduto. Estava a ver que o guarda Evaristo desconfiava.
Assim Elvira recordava algumas estórias muitos anos mais tarde quando os netos lhe pediam para as contar. «Avó conta mais uma», pediu-lhe o filho da Gracinda.
– Uma vez um grupo de contrabandistas, eram para aí uma dúzia, estiveram em nossa casa a comer e a beber. Mas dois deles, a que chamávamos os arrifanos, eram bardinos. Um era mais manjerico mas o outro tinha má fama. E quando sairam daqui convenceram os outros a ir tocar os sinos. Mas os homens de Ruivós perceberam que o toque do sino não era dos nossos. E foi num ái que chegaram à igreja para por fim a tal afronta. E se eles tinham entrado no povo todos juntos a verdade é que cada um fugiu por um caminho diferente não se livrando dumas aguilhadas no lombo. E por hoje já chega que a panela do caldo já está a começar a ferver para a vossa papinha.
A Ti Elvira viveu durante muitos anos e teve a felicidade de conhecer uma dezena de netos. Pelo meio faleceu o filho Zé. Emigrou já casado para terras de França, sozinho, mas depressa voltou para junto da mulher e dos cinco filhos. Veio a morrer, tragicamente, numa queda de uma meda de pão e não chegou a conhecer a sexta filha. As meninas da casa, a Teresa de Jesus e a Ilda dos Anjos ficaram por Ruivós. Ambas casaram. A Teresa com o Germano Caramelo e a Ilda com o Domingos do Peroficós que faleceu três ou quatro anos depois do casamento com uma pneumonia nos tempos da ceifa do feno. E assim a Ilda ficou também viúva com uma menina de colo. Nunca mais casou, ficou junto da mãe Elvira e foi o «homem» da casa no trato do campo. E todos confirmavam que nos leirões da ceifa do centeio e do trigo ninguém lhe levava dianteira. Sempre que alguém precisava de uma injecção iam ter com a Ilda. Sempre que alguém precisava que lhe escrevessem ou lessem uma carta dos filhos emigrados iam ter com a filha Maria. Era das casas mais concorridas da aldeia até porque durante muitos anos «apularam e mediram» o leite da ordenha das vacas leiteiras da aldeia numas bilhas metálicas cor de alumínio que eram recolhidas todos os dias por uma camioneta que as levava para a fábrica. Nesse tempo não havia as regras sanitárias e de «frio» como há agora…
A mais nova, a Gracinda, casou com o Francisco que ficou para sempre conhecido como o Chico da Gracinda. Mas destes falaremos para a próxima…
O Poço, o Teclado e a Telda – nomes míticos para uma geração
Naquele tempo, nos idos anos 70, os emigrantes do concelho do Sabugal já gostavam de mostrar o sucesso do seu sacrifício em terras de França. Era chegada a altura de começar a construir uma maison na aldeia mas, acima de tudo, deixaram de vir de comboio e apresentavam-se agora com «carrões» das marcas gaulesas a puxar atrelados acagulados de bagagem a granel protegida por um oleado e esticadores. O Peugeot 504 foi, talvez, o mais icónico e desejado desse tempo. «Ai vêm os carros das luzes e da matrícula amarela» como nós gostávamos de dizer. E eram milhares que passavam na Nave, nos primeiros dias do mês de Agosto, pela estrada nacional que vinha de Vilar Formoso em direcção ao Sabugal.
Nesse tempo as filhas e os filhos ainda acompanhavam os pais nas vacances. Era a geração de jovens que nasceu nos anos 60 e que tinha entre os 10 e os 25 anos. E éramos muitos em todas as aldeias. Os que chegavam e os que cá estavam todo o ano. Mesmo muitos!
As férias do Verão na aldeia eram ansiosamente esperadas por todos. Eram dias de liberdade e aventura com os primos e os amigos. Os dias passados a guardar as vacas e as cabras. As subidas às cerejeiras e as corridas de burro sem albarda e respectivos tombos. As perigosas brincadeiras com o cambão do poço onde andava o burro à roda. As boleias no carro de vacas do Ti’Germano pendurado nos estadulhos. Mas há um momento que recordo para a vida. O prémio por passar na quarta classe foi uma bicicleta «maxi Sirla cross» (tipo chopper) que levei no comboio de Lisboa até à Cerdeira. Na aldeia todos me pediam – «deixa-me dar uma voltinha» –, e eu todo vaidoso anuia alertando para que não a riscassem… Um dia mais tarde num teste de Proust perguntavam-me: «Qual foi o presente mais importante da sua vida?» Eu respondi sem pestanejar: «A minha primeira bicicleta!»
E assim os limites passaram das ruas e caminhos de Ruivós para a longínqua Ruvina a menos de dois quilómetros. Recordo que íamos ao «comércio» do colégio das freiras para picar o quadro das rifas. Era um cartão dividido em quatro quadrados com centenas de pontos que depois de empurrados pela ponta de uma caneta bic desvendavam pelo lado detrás um papelinho com o prémio, invariavelmente beijinhos (bolinho de massa), caramelos ou amêndoas.
Em Ruivós o «comércio» era no casarão do Ti Joaquim Marinheiro e da Ti Mari’Emília, um casal que não teve filhos. Chegávamos com as nossas moedas de cinco tostões ou um escudo para jogar no cartão e depois ela deixava-nos trocar os rebuçados por copinhas de geropiga ou ginja. E sei que foi nesse lugar que senti pela primeira vez as distorcidas sensações poéticas de leveza que me faziam rir por tudo e nada! Até porque não há mais metafísica no mundo que beber uma copinha de geropiga (com ou sem copo de chocolate) com sete ou oito anos!
Depois vieram dias eternos passados no café da Natália na Ruvina; e as tardes no rio Côa, à ponte da Rapoula ou na açude da Telhada. A ida era feita na estrada Ruvina-Rapoula com a bicicleta em velocidades vertiginosas pela barreira abaixo sem tempo para olhar para o cabeço da Senhora das Preces. A vinda ao final da tarde era quase sempre com a bicicleta à rédea porque a subida de laje da guarda não era para todos.
Um dia alcancei outro objectivo. Tinha 14 anos. Consegui convencer a minha mãe a comprar uma Dunia Zundapp de cinco velocidades. E os limites do Mundo voltaram a aumentar… até Vale das Éguas, Aldeia da Dona, Nave, Soito… sempre tendo em atenção se os «guardas» estavam ao cruzamento até porque nessa altura não havia seguros nem capacetes…
– Aqui está, Luís, muito resumidamente como todos os anos tenho passado as férias do mês de Agosto que para mim são três meses entre Junho e Setembro.
– Fala mais alto! Este Rod Stewart não deixa ouvir nada!
Ia repetir a última parte da conversa mas, entretanto, terminou o «Sailing» e começaram os slows. E eu aproveitei para tentar a minha «jogada» com a Sylvie que estava no grupo do Luís. Os trinta minutos que se seguiram foram para dançar «lentamente», com as cabeças encostadas, num ambiente onde a bola de espelhos dava vida à luz negra daquela acanhada pista na discoteca Upita à entrada do Soito.
No fim da matiné de sábado despedi-me do Luís que conheci nessa tarde e que tinha vindo do Sabugal com a prima Sylvie e mais quatro «franceses» enfiados num Renault5 do «departamento 93».
– Onde vão amanhã? – perguntei, antes de abalarmos.
– Amanhã é domingo ficamos pelo Telda! – disse o Luís que liderava o grupo.
– Para o Telda não posso ir. Tenho medo da «brigada». Mas se quisessem ir até ao Poço… A Sylvie, ouvinte atenta, aproveitou para dizer ao Luís que gostava de conhecer o Poço.
– Pode ser! Encontramo-nos no Poço. Aproveito para rever o meu amigo Carlos. Até amanhã! – disse o Luís. Os outros quatro, filhos de emigrantes, nada sabiam dizer em português e tentaram um «até amanhã» com sotaque franciú.
– Até amanhã Sylvie! A demain! Au revoir! – disse eu orgulhoso por saber dizer «quelques mots».
No domingo à tarde o porteiro do «Poço» viu-nos chegar do lado da Nave, aos oito de Ruivós, em quatro motorizadas e torceu o nariz. «Sois só rapazes? Não podeis entrar! Só acompanhados!» Mas, entretanto, o Luís chegou também com a carava do dia anterior. Pediu para falar com o Carlos e tudo se arranjou. E foi assim que iniciei uma grande amizade com essa figura mítica do concelho do Sabugal que dá pelo nome de «Carlos do Poço» e que ainda hoje quando me vê diz invariavelmente com um sorriso amigo: «Tenho-te marcado falta!»
Mas nessa tarde o ambiente estava fraco. O meu primo Dominique acabado de chegar disse-nos que o parque do Teclado estava cheio de carros. E lá fomos todos até ao Teclado, outro dos lugares míticos da minha juventude. Mas sobre o Tó Chuco e a discoteca Teclado falamos para a próxima neste presente do passado…
E assim recordo esse mês de Agosto em que fiquei amigo do Luís que estudava no Outeiro de São Miguel e da prima Sylvie que habitava em Saint-Denis no «quatre vingt treize».
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«Histórias da Memória Raiana», (episódio 11), por José Carlos Lages
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Os episódios das «Histórias da Memória Raiana» são escritos semanalmente por um autor diferente. Participaram até agora nesta primeira temporada: António Emídio, Fernando Capelo, José Carlos Mendes, Ramiro Matos, António José Alçada, Franklim Costa Braga, António Martins, António Alves Fernandes, Joaquim Tenreira Martins, Georgina Ferro e José Carlos Lages. No domingo, 7 de Março, começa a segunda temporada com o António Emídio.
Apesar de fazer referência a nomes e lugares verdadeiros da região raiana dos territórios do Sabugal esta é uma obra de ficção e qualquer semelhança com nomes de pessoas, factos ou situações terá sido mera coincidência (ou talvez não!)
José Carlos Lages
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