Em virtude de a Oração de Sapiência, proferida pelo escritor, Dr. Joaquim Tenreira Martins, no Auditório do Sabugal, a 19 de fevereiro de 2018, por ocasião do IX Capítulo da Confraria do Bucho Raiano, ainda não ter sido publicada neste blogue, como tem sido hábito, vamos começar agora inseri-la, nesta época de Carnaval, repartindo-a em três partes.
(Continuação.)
– Lá estás tu com os teus complexos… As mulheres, não as podes pôr de lado! Aliás, são normalmente elas que te confecionam para seres servido à nossa mesa. Claro que elas vão ao teu encontro com algumas reticências e, quando começam a comer-te, normalmente não exageram. Mas nos dias de festa também não se privam.
– Tu estás a encorajar-me e fico-te muito grato. Vendo bem o que se passa por essa Europa fora e por esse mundo, terei pouca possibilidade de me expandir, pois há certas religiões que proíbem aproximar-se de mim e saborear-me.
– Meu caro Senhor Bucho, no mundo em que vivemos temos de ser realistas. No país onde vivo, há comunidades, algumas até bem numerosas, em que a religião proíbe comidas de carnes da tua estirpe. Não podemos, porém, tomar a parte pelo todo. Temos de ser compreensivos e tolerantes. Olha o meu caso. Eu até tenho vizinhos de religião muçulmana e de religião judaica. Claro que não lhes posso falar de ti, nem tão-pouco convidá-los para te servir na minha casa. Mas nem por isso me privei de te apresentar a gente portuguesa, belga e de outras nacionalidades que te descobriram pela primeira vez e bem te apreciaram.
– Estou a sentir-me melhor! Estou a compreender melhor a minha missão. Não me quero impor aos outros, mas percebo que poderei ter uma função social, expandindo-me geograficamente e desdobrando os meus sabores numa panóplia de pratos, muitos dos quais estão ainda por concretizar.
Com esta resposta do nosso Senhor Bucho, fiquei mais sossegado e penso que, depois desta consulta psicanalítica de borla, ficou mais seguro para enfrentar novos horizontes, novas paragens, agora menos complexado. E vamos ter bucho recomposto no corpo e na alma por largos anos.
Estas apreensões do Bucho que, por vezes, são também as minhas, não me impedem de o celebrar nas minhas terras babilónicas, e devo confessar que quase sempre o faço em tempos quaresmais, que Deus me perdoe!
Ambiente estranho este de estar em frente, melhor dito, de estar em redor de um bucho raiano em terras longínquas, fora da nossa terra! E que grande oportunidade de o dar a conhecer.
Claro que quem não conhece esta tradição do Bucho Raiano olha para aquela peça enorme, arredondada, fumegante e de cor acastanhada com muita curiosidade e apreensão. Quando eu começo a esventrá-lo, meu Deus, que cheiro se espalha pelos ares! Os olhos dos convivas concentram-se nele. E a ele, todo vaidoso, como é o seu carácter, não lhe apetece dizer nada. Observa e regala-se, ao sentir que é o centro de todas as atenções. Ele é o Senhor Bucho! E, quando já esventrado, começa a pingar de untuosidade, então coloca-se à espreita das reações dos comensais. Constata que as narinas já estão repletas do delicioso cheiro bem característico que exala do seu corpo, que os lábios não param de mexer de ansiedade e que a saliva não tem mais paciência para ficar sozinha na boca, sem se privar do famoso dito cujo, não cessando de engolir em seco.
A curiosidade leva os convivas a escarafuncharem com o garfo e com a faca, à procura de descobertas anatómicas do porco: o focinho, o rabo, o soventre, a faceira, tudo bem condimentado com alho, pimentão e colorau. E o bucho ouve sempre com satisfação o consolo de todos os comensais inicialmente reticentes.
Nós, sabugalenses, que estamos habituados a passar a fronteira, temos de encorajar outros a passá-la também.
Este instinto de ir ao encontro e de observar, tivemos o privilégio de o experimentar com outros convivas. Não falo do Professor Carvalho Rodrigues que, do seu Topos de Casal de Cinza, conhecia perfeitamente esta nossa tradição, nem do General Pina Monteiro, agora nosso distinto confrade que se converteu também a esta iguaria e que muito nos honra. Falo de embaixadores da capital da Europa que ficaram rendidos a este prato tradicional, quer acompanhado com os tradicionais grelos, quer acompanhado de castanhas provenientes do nosso Sabugal. E que o Chanceler me perdoe a introdução desta modalidade, pois grelos, Senhor Chanceler, são coisa rara por aquelas terras. Sem falar de companheiros de tertúlias que já é quase tradição atirarem-se corajosamente ao Bucho Raiano, pelo menos uma vez por ano. Que o digam os quase confrades e amigos: o urologista António Dias Monteiro, o visionário José de Matos, o artista-pintor António Cristóvão e o editor Joaquim Pinto da Silva, para citar apenas os presentes nesta sala.
Aplica-se ao Bucho Raiano um slogan concebido por Fernando Pessoa:
Primeiro estranha-se, depois entranha-se…
Mencionarei, enfim, um outro, bem improvável, um asceta que viveu longe da nossa fronteira, mas que é celebrado em várias terras do Sabugal: o venerável Santo Antão. Os buchos, as chouriças, os porcos, os presuntos, os salpicões, as farinheiras e as farinhatas eram para ele objeto de tentação, que o assediavam todos os dias. Não admira, pois, que o grande pintor Jerónimo Bosch se tenha lembrado dele para o imortalizar num quadro denominado «As Tentações de Santo Antão», cuja belíssima pintura, antes de chegar a Lisboa, teria passado certamente pela raia sabugalense, itinerário obrigatório para chegar à capital do Reino.
Todo o saber acumulado num Bucho Raiano não caberá certamente na sabedoria dos preparativos deste Nono Capítulo que se desenrola, como é hábito, de uma maneira festiva. Após esta longa viagem ao interior de nós próprios e deste nosso Senhor Bucho, vamos agora em romagem peregrina, nestas terras sabugalenses, e mais uma vez, em busca da nossa ancestral cultura, cuja base gastronómica nos orgulha e cuja simpática tradição a nossa Confraria se tem empenhado em não deixar perder.
(Fim.)
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«Pedaços de Fronteira», opinião de Joaquim Tenreira Martins
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Novembro de 2012)
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