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Página Principal  /  Confraria Bucho Raiano • Orações de Sapiência • Vale de Espinho  /  À mesa, na diáspora, com o Bucho Raiano (2)
21 Fevereiro 2021

À mesa, na diáspora, com o Bucho Raiano (2)

Por Joaquim Tenreira Martins
Joaquim Tenreira Martins
Confraria Bucho Raiano, Orações de Sapiência, Vale de Espinho joaquim tenreira martins Deixar Comentário

Em virtude de a Oração de Sapiência, proferida pelo escritor, Dr. Joaquim Tenreira Martins, no Auditório do Sabugal, a 19 de fevereiro de 2018, por ocasião do IX Capítulo da Confraria do Bucho Raiano, ainda não ter sido publicada neste blogue, como tem sido hábito, vamos começar agora inseri-la, nesta época de Carnaval, repartindo-a em várias partes.

Lição de Sapiência de Joaquim Tenreira Martins no VIII Capítulo da Confraria do Bucho Raiano
Lição de Sapiência de Joaquim Tenreira Martins no IX Capítulo da Confraria do Bucho Raiano

Quando regresso à Beira raiana, já não encontro as mulheres da minha infância que, depois da matança do porco, iam ao Rio Côa lavar as tripas do porco para depois fazerem os enchidos. Impressionava-me a habilidade dos seus gestos precisos que tinham adquirido ao abrirem os sulcos da terra que cultivavam todos os dias. Quando o porco ia para o altar do sacrifício, eram estas mulheres fortes que enfrentavam os grunhidos infernais do porco para apular o sangue que esguichava em jorros do coração que tinha sido fendido pelo cuchilho certeiro do matador. E, quando pegavam nas enchedeiras soldadas pelos latoeiros que se deslocavam às aldeias, olhava para os seus dedos ágeis de onde tanto podiam sair morcelas, como farinheiras ou chouriças e mesmo o nosso Bucho Raiano!

Quem não se lembra dessas mulheres, cobertas com o lenço preto que lhes cobria a cabeça, hábito tão higiénico para estas circunstâncias, debruçadas sobre grandes alguidares de barro, mergulhadas na faina de encher as tripas do porco, para prepararem com empenho e carinho o tesouro de guerra que seria o sustento da família até à próxima matança.

Mas, numa matança, todas as atenções se concentrariam na confeção do Senhor Bucho, porque aquelas mulheres tinham aprendido a arte de cuidar dos seus filhos, dos seus homens e dos seus enfermos e moribundos. Não admira, pois, que esse Senhor Bucho tenha ficado tão caprichoso, devido talvez a tantas atenções de que foi objeto por parte das mãos carinhosas das nossas mães. Alguns dirão que o Senhor Bucho ficou com uma espécie de estados de alma que podem variar entre a depressão e a alegria intensa até rebentar, de júbilo, aquela enorme bexiga.

Ele é, de facto o rei dos nossos enchidos raianos da Beira, mas não pensem que um rei não é vulnerável. Sofre como muitos de nós daquele complexo de se impor e de se mostrar em público. Por isso, é preciso dar-lhe a mão, ir ao seu encontro, falar-lhe com o carinho com que falamos aos nossos filhos e aos nossos netos, para que não fique embuchado, no seu canto, a afagar a rotunditas ventris, a redondeza do ventre, como é de sua natureza. É difícil que ele próprio tome a iniciativa de vir ter connosco. E, na verdade, entre nós se diga, tem alguma razão em querer superar os complexos que o podem atormentar!

Nas idas e vindas da minha diáspora, imaginem que um dia o nosso Senhor Bucho veio, com toda a confiança, ter comigo, conhecendo talvez a minha orelha fácil para ouvir os males do corpo e da alma.

Entrou-me pelo meu gabinete adentro, mesmo sem bater à porta. Claro que um qualquer ser com um mínimo de educação não o faria, mas ele, com aquele sorriso beato e ingénuo, com uma carinha rechonchuda e avermelhada, parece criar logo empatia. Eu que passei a minha vida a ouvir pessoas, só pela maneira como o Senhor Bucho entrou e, sobretudo, se sentou percebi que demoraria algum tempo a desembuchar. Compreendi logo estar diante de alguém que padece de complexo de superioridade, de querer ser mais que os outros só por ter uma barriga maior, mas sustentado em pés de barro, mesmo muito frágeis. Disse para comigo que, com estes, é necessário ter cautela porque se lhes dá para desembuchar num dia em que dormiram mal ou tiveram um mau-olhado, nós, os que trabalhamos no social, estamos feitos…

Olhava-me fixamente, um pouco assombrado, parecia que vinha de um outro planeta. Com as mãos regeladas, autorizei-o a aquecer-se para ver se lhe degelava também o cérebro para as palavras saírem mais facilmente.

– Venho dos lados do Sabugal. Nesta altura, cai lá cada ruça que o gelo penetra até aos ossos e ainda não me recompus – disse o Bucho com um tom sério.

Era difícil não reconhecer um Senhor Bucho e, de um momento para o outro, senti-me também todo orgulhoso de vê-lo na minha frente, embora um pouco acanhado, mas sincero e leal como todos os raianos. E uma onda positiva de idiossincrasia pôs-nos mais à vontade.

– No meu gabinete não pode haver frio, nem no corpo nem na alma, Senhor Bucho. Este é o orgulhoso acolhimento de um beirão que se preza, como eu.

E a empatia não podia ser melhor para criar aquele ambiente que consegue desembuchar os corações mais empedernidos.

– Mas este frio é bom para o Senhor Bucho e mesmo para todos nós – continuei – Contrariamente aos humanos, os senhores buchos podem aguentar melhor o frio. Até lhes faz bem. Se não fosse a combinação do frio e do fumo, morreriam de podres. É também o frio que os conserva em bom estado!

Parece não ter gostado da minha observação e já estava a vê-lo um pouco embuchinado. Não era essa a ideia que eu tinha de um bucho. Percebi-o sempre jovial, alegre, bonacheirão. A não ser que estivesse a revelar-me uma faceta de que não me tivesse apercebido. Ainda pensei meter uma espécie de bucha para melhor revelar os seus sentimentos.

– Já estou farto que me chamem bucho. Não vivo bem com esta designação. Não é bem visto ser gordo.

– Mas, ó bucho, tira lá essas ideias da cabeça! Sabes bem que tu és a alegria à nossa mesa! Não leves as coisas para esse lado! – tentei tranquilizá-lo.

– Antigamente, sentia-me bem na minha pele transparente, avermelhada e com um cheiro bem pronunciado. As pessoas gostavam mais de mim. Era acarinhado, não olhavam para mim com desdém. Sentia-me como um rei e era mais feliz. Quando olhava para os que me rodeavam – morcelas, chouriças, farinheiras –, todos me guardavam respeito. Agora não sinto isso.

– Não penses, não penses muito. Sobretudo, não penses que és filho de porco. Isso pode dar-te alguns complexos na época que atravessamos.

– Todos nós temos problemas… – desembuchou!

– Estou a compreender-te melhor. Antigamente, estavas confinado à raia beirã, lá no cantinho do Sabugal, onde eras bem tratado. Agora, pretendem divulgar-te por todo o lado… Claro, expões-te a olhares de soslaio e até a maus-olhados, o que te pode desestabilizar. Não esqueças que a tua forma e o teu aspeto bem insuflado são a tua natureza intrínseca. Não adianta nada estares mirando sempre para ti próprio. Tens necessariamente de assumir a tua personalidade e ir ao encontro dos outros e de outras terras.

– Mas devagar porque, se é certo que tenho a forma de uma bola, também não pretendo andar aí a rebolar-me por qualquer canto.

– Estou a compreender! Mas tens de criar mais confiança em ti e nas tuas potencialidades. Antigamente, saías apenas uma vez por ano. Assentavas arraiais à mesa no Domingo Gordo. Nesse dia, eras o rei! Depois, ninguém mais te falava. Passavas um ano esquecido. É isso que queres? Agora, encontramos-te por todo o lado. Começas a ser mais conhecido e apreciado. E, nota, não é só ires para a mesa com as tradicionais batatas e grelos. Alguns tentam experimentar outras maneiras de te abordar. Descomplexa-te, não tenhas medo! A imaginação dos chefes, melhor, dos cozinheiros, é imensa! Temos de os contactar e dar-lhes ideias para te diversificarem. Não conheces o chefe Rui Cerveira do restaurante Casa da Esquila? Ele já serviu salada de bucho com castanhas, lasanha de bucho com boletos, arroz de bucho com espinafres, esparguete de bucho com cenouras, ao todo já tem 47 receitas de Bucho. Estás a ver… vais ter futuro!

(Continua.)

Ao redor de um Bucho Raiano , em Bruxelas
Ao redor de um Bucho Raiano (na diáspora) em Bruxelas

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«Pedaços de Fronteira», opinião de Joaquim Tenreira Martins

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Joaquim Tenreira Martins
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