Naquele dia em que a neve cedera lugar ao gelo escorregadio, nos caminhos e quelhas da nossa aldeia. Só se estava bem na cozinha à roda do lume. Nem os rapazes iam esperar as cachopas ao chafariz, nem sequer se viam os vizinhos a ir ao curral buscar lenha ou qualquer outra coisa. Era a altura de descer à loja pelas escadas do alçapão.
Mas, a tia Felisbela e o tio António tinham matado o porquinho e a carne tinha de ser enchida.
Eles iam sempre lá a casa ajudar e não era justo que ficassem sozinhos com todo aquele trabalho. Por isso, enfiámos as botas altas de borracha sobre as meias grossas de lã. Eu vesti o sobretudo e a tia pôs o xale pesado de merino. E lá fomos…
Eu levava os braços enrolados à volta da cintura da tia e ela aconchegava-me com imenso carinho ao seu xale. Quando chegámos o tio nem queria acreditar. Estava ele a tentar ajudar na enchedura. Mas, como tinha pouco jeito, só enfiava a massa das farinheiras e a tia apertava depois o atilho para as fechar.
Meu tio era irmão da minha mãe e pediu a benção à nossa tia Maria, que era sua madrinha e tia, por ser irmã de minha avó Neves,. E, enquanto ele atiçava o lume, ia dizendo que não devíamos ter vindo porque estava tanto frio e ainda íamos adoecer. Mas ela respondeu-lhe que era um «impatchoso!…» e começou a descalçar as botas para pôr as «tchancas» que tinha levado num taleguinho debaixo do braço. Nessa altura não havia sacos de plástico!
A tia Felisbela deitou uma «pinguichinha» de água quente na bacia para que lavasse as mãos e, logo-logo… estavam ambas de volta dos «barranhões» da carne numa lufa-lufa interminável.
Meu tio, retirou umas febrinhas e foi enchendo a grelha que pusera sobre as brasas que já havia afastado, com a tenaz, um «poquenino» da labareda do lume. Depois, fez um chazinho de flor de carqueja, trouxe umas canecas, pão e uma caixinha de galhetas que colocou na mesa pequena para todos comermos.
Meu tio era um verdadeiro artista, pegou num ponteiro e numa pedra de escola e começou a desenhar animais para eu estar entretida. Como o lume dava bastante claridade, não acendeu logo o candeeiro. Mas ainda o acendeu antes do toque das Avé Marias porque estava escuro dentro de casa. Foi então que começou a fazer-me sombras chinesas. Como eu achava lindo o coelhinho, o cão, o pombinho…
Já a noite ia adiantada quando levantaram os varais da carne e os puseram «à chaminé». Já tinha chegado meu tio «Zé Manso», marido da nossa tia, para nos fazer companhia no regresso. Ele ajudou a subir e posicionar os «paus da carne» ao fumeiro.
Apanharam-se as brasas para encher a braseira do estrado e fez-se um lume pequenino para a carne não assar. Eu fiquei ao cantinho da chaminé enquanto eles comiam o petisquinho que estava na mesa pequena da cozinha para não irem para a sala apanhar frio. Depois, agasalhámo-nos bem antes de sair para a rua. Meu tio disse que não era preciso levar o candeeiro de mão porque estava lua cheia de Janeiro e, também, o frio era tal que a chaminé iria quebrar com a chama quente lá dentro. Ele tinha uma pilha espanhola, que iluminava o caminho em noites muito escuras, mas não era preciso acendê-la, embora tivéssemos que nos preocupar em ver onde íamos pondo os pés para não cairmos no gelo.
O regresso era sempre uma alegria de risos e pequenas corridinhas. Depois era o costumado ritual de dar torcida ao candeeiro que o tio deixara aceso, varrer o lume e retirar o rebolinho quente para os pés, ou encher a botija com a água quente da panela de ferro, pedir a benção e ir mergulhar entre os lençóis de linho que cobriam o colchão de folhelhos e mantinham o cheiro a sabão e à cora ao sol da ribeira… Ali, onde eu sonhava aqueles sonhos lindos de menina, quando a vida ainda tem a verdadeira dimensão de cada dia, vivido sem os medos e sem as preocupações que os adultos tanto choram e temem!…
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«Gentes e lugares do meu antanho», crónica de Georgina Ferro
(Cronista no Capeia Arraiana desde Novembro de 2020)
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Parabéns, Georgina. Aprecio muito os seus artigos, cujo mérito é extraordinário, pois neles me revejo pessoalmente e reflectem o que era a vida de “antanho”, do nosso tempo que é preciso recordar e levar aos mais novos.
Ainda bem que há quem recorde estas memórias.
Continue assim.