Às terças-feiras é tempo da poesia de Georgina Ferro. A poetisa raiana junta a sua sensibilidade artística às memórias e ao amor pelas gentes e terras raianas…

Lembro-me tantas vezes de tentar decifrar os gatafunhos chegados de longe… a tristeza de não conseguir ler e acalmar o coração de tantos avós, pais… E, tanta carta eu escrevi, aos meus oito anos, ditada pelas senhoras de idade lá da aldeia… A caneta de aparo e a pouca destreza não davam velocidade para o desenrolar dos sentimentos que voavam, enquanto eu ia rascunhando as linhas do papel da carta que havia custado dois tostões e eu ainda podia deixar cair um borrão!…
A TI’MARIA
A vaquinha já deixara de mugir na loja
Já não era preciso ir levá-la ao lameiro
Nem aprontar a coalhada p’ra fazer os queijos
A abalar de casa, já pouco se arroja…
A não ser para procurar carta no correio
Que, se vier, molhará de lágrimas e beijos
Não pelos francos que poderá acarretar…
É por aqueles rabiscos que não sabe ler
Mas adivinha com a saudade que acarreta
Lastimando o não ter podido aprender
Olhar no vago, numa rebeldia quieta,
Aguarda que alguém, dos que por lá ficaram,
Possa, pelo menos uma, duas, três…mil vezes
Fazê-la saber de cor as penas que calaram
As gargalhadas que já não escuta, há meses
Mas, não surge ninguém por ali, por perto dela.
Resfriou na subida e baixa do balcão
Agora, arredou a cortina da janela
Vê, não a rua, mas a dor do seu coração
O filho, nunca apreendera bem as letras
Havia sempre tanto trabalho por fazer
E a fome não se matava com essas tretas…
_ Afinal, teriam matado esta saudade!
Agora, nem podia sozinho escrever
E, para quê, se também ela não pode ler?
A não ser que, alguém com desvelada bondade
Se lembrasse de por ali passar e subir
Pois ela, poucochinho mais podia fazer
Do que agasalhar aquela carta no peito
Para quebrar a amarga dor e solidão
Que a mantinha cativa sempre, de tal jeito,
À espera de ter alguém que lhe desse a mão
Ou apenas, lhe devolvesse a saudação.
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«Gentes e lugares do meu antanho», crónica de Georgina Ferro
(Cronista no Capeia Arraiana desde Novembro de 2020)
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Como sempre adoro