Em virtude de a Oração de Sapiência, proferida pelo escritor, Dr. Joaquim Tenreira Martins, no Auditório do Sabugal, a 19 de fevereiro de 2018, por ocasião do IX Capítulo da Confraria do Bucho Raiano, ainda não ter sido publicada neste blogue, como tem sido hábito, vamos começar agora inseri-la, nesta época de Carnaval, repartindo-a em três partes.
![Confrade Joaquim Tenreira Martins no IX Capítulo da Confraria do Bucho Raiano onde proferiu a Oração de Sapiência](https://i0.wp.com/capeiaarraiana.pt/wp-content/uploads/2021/02/jtenreiramartins_20210214_confraria_800x600_01.jpg?resize=768%2C576&ssl=1)
(Parte 1 de 3)
Ao chegar às nossas terras raianas, apetece-me dizer como um poeta francês do século XVI, Joachim du Bellay: «Feliz aquele que, como Ulisses, fez uma boa viagem.» Eu prefiro dizer: «Feliz aquele que, como sabugalense, chegou à sua terra natal.» Estas nossas terras são como uma espécie de Ítaca maravilhosa, a Ítaca sabugalense onde vimos também descansar, depois de uma longa estadia em terras de Lisboa, Porto, franças e araganças. Esta nossa terra é o nosso mito utópico. «E o mito é o nada que é tudo», como diz Fernando Pessoa ao referir-se a Ulisses. Esta terra é a nossa utopia, é o lugar privilegiado de onde vemos o universo. Chagall, ao fazer o seu autorretrato, pintou a sua aldeia em cima da sua cabeça. Para ele que viveu nas quatro partidas do mundo, a sua terra natal era a grande fonte de inspiração, via tudo através do lugar onde nasceu e passou a sua infância. Também o nosso Amadeo de Souza-Cardoso, nos anos em que esteve em Paris, pintava, repintava e tornava a pintar a sua Manhufe, o seu Marão, a sua montanha telúrica que lhe dava forças para pegar nos pincéis e combinar o matiz das cores até ao infinito.
Direi como Alberto Caeiro:
Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do Universo
Por isso, a minha aldeia é tão grande como outra qualquer,
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura.
Também eu levei comigo, no saco da minha memória, o senhor arraiano, o senhor Bucho. Galguei a Serra da Malcata, atravessei o Rio Côa, cheguei à fronteira, passei por Valverde del Fresno ou talvez por Navasfrias. Já nem me lembro. Encontrei-me em Cidade Rodrigo e recordei-me do mítico general resistente às tropas napoleónicas de Massena, o grande Andrés Pérez de Herrasti, e, antes de transpor os umbrais da austera catedral centenária, observei os numerosos impactos de balas de canhão com que os franceses assolaram a cidade-mártir durante dois meses e meio, em meados de 1810. Não pude deixar de me recolher em frente à lápide comemorativa que assinala a morte do General inglês, Robert Crawfurd, comandante da Divisão Ligeira, camarada de armas e de grandes batalhas travadas ao lado do General Wellington, esse grande comandante que travou a sua última batalha em terras de Sabugal.
Prossegui a minha viagem pela Espanha e cheguei a Salamanca. Fui-me sentar à sombra das arcadas da Praça Maior para afastar a nostalgia que começava a invadir-me, pois percebia que o Sabugal e a minha raia iam ficando cada vez mais para trás. Mas, ao ouvir o burburinho fervilhante de jovens estudantes, de clérigos e de um montão de gente que ia e vinha em todos os sentidos, percebi que havia por ali um substrato de alma ibérica que nos irmanava na nossa exuberância de raianos e de aventureiros contrabandistas.
Os traços do nosso iberismo iam-se diluindo à medida que me aproximava das araganças e das franças.
E quando lá aterrei, fiquei triste até às lágrimas, apenas consolado pelo nosso grande poeta Luís de Camões com quem naquele momento me irmanei:
E Por Babilónia, me achei,
Onde sentado chorei
As lembranças de Sião,
E quanto nela passei.
Lembrei-me dos nossos conterrâneos que, com passaportes de coelho, tiveram de galgar montanhas, atravessar riachos a vau, dormir em palheiros, calçar as botas de sete léguas, arrastar-se de noite, à chuva, apanhar com a neve dos Pirenéus que lhes gelava o corpo. Uma chouriça ou um farinheiro, que as suas mães ou mulheres tinham confecionado, serviu-lhes, muitas vezes, de viático.
Valeram a pena os sacrifícios passados e de que muitos se ufanam, arvorando-os mesmo como galardão.
![Os confrades Joaquim Pinto da Silva e Joaquim Tenreira Martins prontos a degustar o bucho](https://i0.wp.com/capeiaarraiana.pt/wp-content/uploads/2017/03/jtenreiramartins_20200624_bucho_600x450_01.jpg?resize=600%2C450&ssl=1)
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Longe das nossas terras, tivemos de contactar novas culturas, novos hábitos e novas gentes. A maleabilidade de contrabandista também serviu para nos inserirmos na nova sociedade que íamos descobrindo e que nos acolhia. Fomos nós os melhores embaixadores do nosso Portugal e da nossa Beira raiana onde tantas raízes criámos.
Mas foram também estas nossas tradições que nos construíram. Não admira, pois, que tenhamos levado para onde nos radicámos os hábitos culinários que nos ligam à nossa infância. Nas nossas idas à terra natal, de volta trazemos sempre os produtos que as nossas mães tão carinhosamente confecionavam, entre as quais impera o Bucho Raiano.
(Continua.)
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«Pedaços de Fronteira», opinião de Joaquim Tenreira Martins
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Novembro de 2012)
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