O Entrudo longe de ser a festa vistosa hoje em muitas cidades, com carros alegóricos e muita menina quase despida sambando, era uma pausa na dureza do trabalho e trazia uma certa alegria à povoação.

Uns dias antes, rapazes ousados atiravam à noitinha cântaros cheios de boguelhas e outros objectos, como cinza ou ossadas de cabeças de burro, que rolavam pelo corredor nas casas onde havia raparigas solteiras, em tempos em que as portas se fechavam apenas com a aldraba. À porta destas colocavam defumeços de bons ou maus cheiros.
Às noitinhas os rascalheiros atormentavam moças e crianças. Havia balhos onde se deitavam fitas (serpentinas), que os garotos apanhavam com varas e guardavam escondidas durante a Quaresma. Não faltavam estalinhos, bombinhas e rebuscapés que redopiavam entre as pernas dos dançarinos.
Nas ruas um ou outro mascarado ensaiava as suas trapalhices, dando asas aos sonhos de transformação em mulheres ou imitando os pés descalços, os desgraçados de calças rotas ou a vida dos ricos.
Porque participei nalgumas peripécias carnavalescas engendradas por meu pai, amigo de partidas de Entrudo, este faz parte das memórias da minha infância, razão por que lhe fiz estes versos.
O ENTRUDO
Boguelhas e rascalheiros,
Defumeços e partidas
Às raparigas, tudo vale
Que não vão levar a mal
E irão ser bem queridas.
Ó Entrudo, ó Entrudo,
Ó Entrudo trapalhão,
Ninguém te leva a mal,
Como lá diz a canção,
Brincares com o sisudo.
Deixai o povo foliar
Que aí vem a Quaresma
Com sua tristeza dura.
Sem carne pr’a mastigar
Vai ser mesmo uma tortura.
Esquecer o dia a dia
Com suas muitas tristezas.
Até o pobre alivia,
Que tem ora ocasião
De esquecer o não ter pão.
Pode até fazer de rico
Ou de mulher se vestir.
A todos vai fazer rir
Mostrando o que não é.
Basta olhar-lhe pr’ ó pé.
O sapato que calçou
Bem se vê que não é seu
De tão pequeno ficar,
Como se fosse um pigmeu.
A rico não vai chegar!
Te vestiste de mulher
E ela d’homem se vestiu.
O que a Natureza fez
Um e outro trocar quer.
Sonha, sonha e logo vês.
Com vinho, até pretendes
Esquecer a tua vida.
Quando sisudo estiveres
Concluirás que é partida
A ilusão que mantiveste.
Ao menos sonhaste ser
O que sempre desejaste:
A tua vida esquecer,
Coisa que sempre amaste,
Nunca pudeste fazer.
Ah! Se fosse sempre Entrudo!
Para quê trabalhar tanto
Se o Entrudo te diz:
Tu rico serás, enquanto
De ti esqueceres tudo?
Na Quarta-Feira de Cinzas
Voltarás ao teu normal.
Sem máscara, a cara lisa,
Verás que és tal e qual
A antes do Carnaval.
Ah! Se eu pudesse ser
Ao menos um dia tu,
Que não quiseste ser eu!
Ver-me-ia ficar nu,
Despido dos males meus.
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«Lembrando o que é nosso», por Franklim Costa Braga
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