• O Primeiro…
  • A Cidade e as Terras
  • Contraponto
  • Cronistas
  • Documentários
  • Ficção
  • História
  • Personalidade Ano
  • Ficha Técnica

Menu
  • O Primeiro…
  • A Cidade e as Terras
  • Contraponto
  • Cronistas
  • Documentários
  • Ficção
  • História
  • Personalidade Ano
  • Ficha Técnica
Página Principal  /  Casteleiro • Covilhã • Histórias da Memória Raiana • Jarmelo • Quadrazais • Sabugal • Soito  /  Histórias da memória raiana (1.7)
31 Janeiro 2021

Histórias da memória raiana (1.7)

Por Capeia Arraiana
Capeia Arraiana
Casteleiro, Covilhã, Histórias da Memória Raiana, Jarmelo, Quadrazais, Sabugal, Soito antónio emídio, antónio josé alçada, antónio martins, fernando capelo, franklim costa braga, josé carlos lages, josé carlos mendes, ramiro matos 2 Comentários

:: :: ANTÓNIO MARTINS :: :: No primeiro episódio o António Emídio «apresentou-nos» a família do Luís do Sabugal quando este se preparava para ingressar no Outeiro de São Miguel. Seguiram-se o Fernando Capelo, o José Carlos Mendes, o Ramiro Matos, o António José Alçada e o Franklim Costa Braga. Esta semana o Zeca do António Martins vai levar-nos para as férias do mês de Agosto na Raia. (capítulo 1, episódio 7.)

Histórias da Memória Raiana - Episódio 7 - António Martins - capeiaarraiana.pt
Histórias da Memória Raiana – Capítulo 1 – Episódio 7 – António Martins – capeiaarraiana.pt

:: :: :: :: ::

HISTÓRIAS DA MEMÓRIA RAIANA
Capítulo 1 – Episódio 7

:: :: :: :: ::

O ZECA DO SOITO

A azáfama no colégio era enorme, pequenos e graúdos corriam eufóricos de um lado para outro, desciam escadas aos saltos, os gritos e a excitação era mais que muita e não havia quem conseguisse pôr alguma ordem no reboliço que por ali se verificava naqueles últimos dias de aulas em que todos se preparavam para partir para as férias grandes, as férias de Verão.

Havia roupas espalhadas nas camaratas, roupas trocadas e disputas por alguma peça de vestuário igual, trocada ou invejada, a que um ou outro se abotoou e gerava sempre algumas picardias para a reaver o seu legitimo dono. Na lavandaria estava o caos instalado, pois cada um procurava as suas roupas para fazer as malas e as irmãs da lavandaria não tinham mãos a medir para atender a tanta solicitação.

Zeca, foi pedir ao padre Geada permissão para levar alguns livros da pequena biblioteca que existia no colégio, para ter que ler nas férias de Verão. Espantado com tão inusitado pedido, o Padre Geada foi logo de imediato com o Zeca à biblioteca para que ele escolhesse os livros que queria, fazendo também algumas sugestões de leituras de obras do cristianismo e catolicismo. Ainda que não fosse esta a leitura de maior interesse do Zeca. Mas não se rogou a trazer um ou outro que o Padre Geada recomendou, para não melindrar a sua reverência. O gosto pela leitura tinha começado desde cedo e estes anos no colégio, com tanta e variada literatura tão acessível, acabaram por lhe aperfeiçoar ainda mais o gosto e aumentaram a curiosidade por mais e cada vez melhores livros. Tinha lido algures e reteve que as bibliotecas são a farmácia da alma, então dizia para si mesmo que um livro seria um remédio para o espírito e era bom que levasse muitos e bons remédios para o longo verão. Pois nem sempre lhe era possível ir à biblioteca Itinerante da Fundação Gulbenkian, pois os trabalhos de ajuda no campo podiam não coincidir com o dia da vinda à terra. E assim já ia fornecido para o Verão.

A cabeça do Zeca andava a mil, nos últimos dias só já pensava nas férias no Soito. Uma saudade que até fazia doer alma. E enquanto fazia as malas já cantarolava o belo hino:

Meu lindo Soito, meu torrão bendito
Com seculares castanheiros sem rival
Leiras humildes, casas de granito
E um sol doirado que já aqueceu nossos pais

Nas tuas praças em domingos claros
Dançam à roda raparigas com seus pares
Em tuas eiras, sob o sol de Agosto
Como um tesouro está o teu pão a secar

Dava por si já a pensar nas idas e escapadas até à Serra da Homem de Pedra, em busca do místico Homem que deu nome à serra e que continuava desaparecido no meio dos barrocos e dos carvalhos, apesar de todos os esforços do Zeca para o descobrir. Pois tinha a firme convicção que ele existia por ali algures. Um enigma que o acompanhou pela vida fora mas que acabou por o desvendar 50 anos depois, quando finalmente descobriu onde estava o Homem de Pedra.

Pensava nas idas com a malta a banhos para a ribeira do Janadão antes de ir buscar as vacas ao lameiro, ou então nos banhos no tanque da rega que havia na Cabeça da Vaca. Banhos que aconteciam antes de se abrir a água para a rega do milho, das batatas, melões, melancias, cebolas, aboboras, couves, morangos, macieiras! Tudo havia um pouco naquele terreno. Já se imaginava nos dias da ceifa e da malha, da apanha do feno. Dava por si a pensar nos dias da vinda de França e de outros países, dos filhos da terra. A miúda gira do verão passado será que vinha este ano? E as festas de São Cristóvão, no primeiro fim de semana de Agosto. Quais seriam os conjuntos deste ano. E a capeia? Será que iria haver uma vaquinha para a malta nova!?

Ao sair da biblioteca o Zeca abeirou-se do grupo da malta da raia, dirigiu-se ao Chico e usando alguns termos da gíria quadrazenha que tinha aprendido quando leu o mais famoso romance da raia, Maria Mim, perguntou-lhe:

– Ó manês Pequenote!
– O que queres ó Patanisca?
– Não sejas facheiro e ouve o que te quero funfar! Amatrix como é que vais para Quadrazais?
– O meu pai vem à Guarda com Ti Barreiro buscar-me! Vamos no velho Ford! Se quiseres podes ir connosco. Deixamos-te no Souto!
– É Soito e não Souto!

Corrigiu logo o Zeca. Mas o Chico Pequenote, o sabichão da turma, retorquiu:

– É Souto porque o nome deriva de um substantivo coletivo, que é um conjunto de castanheiros e lá existem muitos!
– Muito bem espertalhote! O que te falta na mão, fugiu-te para a cabeça. Mas dizemos Soito, como podemos dizer ouro ou oiro, touro ou toiro, couro ou coiro…

O Costa da Nave e o Alcino de Vale de Espinho, atalhando a disputa onomástica, quiseram também aproveitar a oportunidade para pedirem também uma boleia.

– Pequenote! Será que também podemos aproveitar?
– O meu pai falou-me nisso e disse que podíamos ir pelo menos quatro se eu quisesse levar alguém da raia, então vamos tótios.

O Mauzão de Rendo que estava por perto e ouviu quis também aproveitar:

– Ó Chiquinho, eu também posso ir convosco!
– Nem penses! Enquanto me lembrar das dores do meu braço partido e da rosca que me gamaste não contes comigo!

De súbito e quando o Mauzão ia para o agredir, o Zeca antecipou-se e deu-lhe uma valente patada atirando-o ao chão! O que gerou uma risada geral de todos os outros raianos que estavam a assistir à cena no pátio.

Uma boleia para o Soito, veio mesmo a calhar pois ficava de caminho e com certeza o pai do Chico não se importaria de fazer aquele obséquio! Ideia que foi bem aproveitada por todos, que dali em diante perceberam que podiam organizar-se e combinar para partilhar as boleias da terra para a Guarda e as idas para a raia.

Só havia uma carreira ao fim do dia e aquela parava em todas as terras, ainda ia ao Barracão, só depois é que seguia para o Sabugal, mas parava em todas as demais aldeias na volta que fazia por toda a raia sabugalense. E o Zeca estava mortinho por chegar ao Soito e quanto mais cedo e rápido melhor, pois a dura diversão ia começar.

Jogar à bola era uma outra paixão do Zeca, mas esta era uma arte que só podia fazer no tempo de aulas ou numa futebolada na rua à noite com a malta vizinha lá da terra. Sabe-se lá com que bolas era preciso improvisar para fazer gosto ao pé. Pois bolas não abundavam e as prendas que vinham da França ainda não tinham chegado.

Mas a vida e os trabalhos do campo, em que era preciso ajudar o pai na vida agrícola, não deixavam muito tempo livre para aquela gozação.

Grande parte das férias eram ocupadas a ajudar nos campos e a cuidar dos animais. Em muitos dias tinha que levar e guardar as vacas a pastar e passava grande parte dos dias junto dos animais nos terrenos baldios ou terras abandonadas da Serra do Homem de Pedra ou na Devesa que tinham nos Rojais, era este o nome que chamavam no Soito ao sitío dos Urejais, mas o Zeca defendia que o nome correto seria Urzais, por haver por ali muita urze. E já tinha dito ao Chico Pequenote, que o nome de Quadrazais, devia ter resultado do Côa e de Urzais. Porque a ribeira dos Urejais é para ali que corre em direção ao Côa. Então chamariam aquele sitio, Côa-dos-Urzais, que resultou por preguiça do linguajar em Coadrazais – Quadrazais.

Era naqueles dias pelos montes que levava sempre um dos seus livros e aproveitava para esteirar-se sobre um barroco e adentrar-se pelo enredo da estória. Ficava de tal maneira absorvido que quando se dava conta, já as vacas estavam a léguas e por vezes a pastar nas terras dos vizinhos ou todas tresmalhadas, não se percebendo sequer de quando lhe picava a mosca, o que depois era uma carga de trabalhos para as voltar a juntar.

A canícula que se sentia no Soito fazia sempre lembrar o adágio raiano, dos nove meses de inverno e três de inferno. Os trabalhos nesta altura eram sempre mais duros e volumosos do que nas outras estações. Era preciso agadanhar os lameiros, secar a erva e de pois virá-la com uma galha para depois de seco se amanhar o feno. Era nesta altura também que era preciso ceifar os pães, para depois se fazer a malha e guardar a palha triga e a centeia. Nas eiras multiplicavam-se as medas de trigo ou centeio, que aguardavam pela máquina debulhadeira. O Ti Lopes, era quem detinha a máquina e nesta época todos os que tinham cereal para malhar já recorriam aos seus serviços em dias combinados. Ainda que houvesse um ou outro agricultor que ainda recorresse à malha manual, com recurso ao mangual, a maioria já fazia a sua malha com o Ti Lopes.

Os dias de agadanhar e amanhar o feno e a palha eram dias de festa para o Zeca, gostava da agitação que se gerava naqueles dias, vinham sempre amigos e familiares dar uma ajuda.

O Zeca e os mais novos da família eram os estendedores de nagalhos! Os adultos com seus ancinhos juntavam a palha ou o feno e quando o molho era ajeitado, berravam:

– Nagalho! Bota nagalho!

Depois de amanhadas as faixas do feno e os feixes da palha, era preciso carranjar, isto é, carregar nos carros de vacas, munidos com os seus enormes estadulhos, onde eram enfaixados os feixes e as faixas, fazendo altos carregos, em que era preciso algum engenho para se conseguir levar a maior quantidade possível da palha triga ou centeia para as eiras e o feno para arrumar nos palheiros.

Havia sempre uns intervalos para uma boa mastiga e amistoso convívio a meio e no final daqueles trabalhos. Onde não faltavam as boas das chouriças, os saborosos presuntos antes acautelados no dia da matança e agora saídos da salgadeira para a sua prova. Havia sempre uma boa carne de borrego que a mãe guisava como ninguém na panela de ferro e que acompanhava sempre com batata cozida, servida em malgas ou nuns pratos de esmalte com muitos e diversos motivos decorativos. Ou ainda algumas vezes se comia uma boa punheta com tomatas e batatas cozidas assadas na brasa, em que o bacalhau era desfiado sem o adoçar e depois de o passar também pelas brasas.

Nos dias de amanhar o feno, fazia-se lume à sombra do carvalho grande que havia no lameiro do Prado, no Ribeiro do Bispo, para se assar carne. Quase sempre borrego na grelha, que acompanhava com boas fatigas de pão centeio. E no final havia sempre um queijo amanteigado que a mãe tinha curado nas tábuas que estavam suspensas na loja lá de casa e eram forradas por cima com palha, que era depois coberta com panos de linho. Os queijos, eram virados e limpos quase diariamente, para irem curando lentamente! Para se ganhar o melhor sabor no queijo era preciso arte, paciência, tempo e muitos cuidados.

O vinho! esse era servido ao berro de:
– Copo! Bota copo!

E lá ia o Zeca com o garrafão do tinto e com a gasosa da Cristalina, a servir cada um dos ajudantes e perguntando:
– Quer só vinho ou traçado?
– Cheio! Bota, bota, enche!
– Bote abaixo!

Para as mulheres e crianças havia também as gasosas e sumos da Cristalina em garrafas de litro e a laranjada era a mais concorrida. Pois era o sabor de fruta que não se dava nem produzia nas terras frias, não há laranjeiras que se aguentem para norte do Terreiro das Bruxas. Mas Zeca apreciava mais a gasosa do que o sumo. Após cada longo trago, o gás até fazia borbulhas no nariz e provocava sempre ruidosos arrotos de satisfação com a vida e com os dias simples e trabalhosos da vida do campo. Zeca dizia com satisfação e orgulho no Outeiro, que havia a coca-cola escura, americana, que chamavam água suja do imperialismo e havia a coca-cola branca que era a água Cristalina do Soito, que era a gasosa.

Terminadas as ceifas e arrecadado o feno, palha e acautelado o trigo e o centeio que eram armazenados em tulhas diferentes que havia na loja, entrava Agosto e começavam a arribar os filhos da terra.

Era um deslumbramento diário, as quantidades de carros com matrículas francesas que invadiam todas as terras e que metia toda a pequenada a espreitar os contadores para ver quais eram os carros que nos mostradores indicavam a velocidade que podiam atingir os 120kms ou mais. Ou então era ver quem é que adivinhava a qual departamento de França, pertencia este ou aquele número da matrícula, o 75: Paris! 93: Saint-Denis! Moda que metia novos e velhos a falar sobre terras e nomes que desconheciam, mas de onde conheciam alguém que por lá vivia.

O irmão mais velho do Zeca tinha emigrado para França, acerca de cinco anos e, entretanto, tinha casado por lá com uma conterrânea, emigrante que tinha conhecido num dos verões anteriores em que as suas vidas se cruzaram !

Um amor que lhe forçou a coragem e resultou no desafio de se fazer à estrada e a dar o salto, sem papéis, ao mesmo tempo que queria fugir à tropa e à guerra colonial. O casamento ajudou-o depois a conseguir de imediato os papéis, pois ela já tinha dupla nacionalidade! E assim se salvou um filho da terra de uma guerra estupida que tantas famílias martirizou e em tantos outros deixou marcas para a vida toda. Em prol do quê?

Nas tragédias, dramas e contingências da vida precisamos de tempo e distância para lhe encontrarmos o seu sentido e significado de assim ter de ser! O sentido patriótico de então, que levou muitos em obediência cega a lutar por algo que nunca foi nosso. Nem tão pouco fomos nós que o descobrimos, pois antes de descobrirmos aquelas colónias e países, eles já existiam e continuariam a existir com ou sem portugueses. Tivéssemos nós aceitado a transferência e administração daqueles territórios e milhares de tropas portugueses teriam salvo a vida e os que lá viviam teriam salvo o seu património. Assim não houve vencedores nem vencidos perderam-se as vidas e só houve vítimas.

Os pais do Zeca concordaram na altura com a fuga e até foram eles que pagaram ao passador para o levar a passar a fronteira, pois receavam que o filho mais velho a todo o momento poderia ser chamado para o cumprimento do serviço militar obrigatório e ter de ir para o Ultramar, uma vez que era o destino que estava reservado e a ameaça da guerra era mais que evidente para muitos daquela geração e idade.

Mas o irmão mais velho voltou este verão pela primeira vez, passados três anos do dia em que emigrou. Trazia um carro novo, que fez furor na aldeia! E o Zeca aproveitando aquela possibilidade iria naquele verão poder assistir a todas as capeias da raia. E foi logo o primeiro pedido que fez ao seu irmão Carlos quando este foi lá a casa. Pois assim sempre podia rever a malata da raia que andava no Outeiro.

O Carlos como muitos outros filhos da terra, começou também naquele verão a construir a sua casa na terra. Deitou abaixo a casa de pedra dos avós, que antes havia negociado com os tios e que ficava junto do chafariz do Vale. Naquele lugar iria construir uma casa de tijolo e reboco a cimento com três andares e revestida a azulejo nas varandas dos andares superiores. Esta era entre muitas outros estilos a atípica nova construção contemporânea que muitos adotaram fazer, sem que nada nem ninguém se lembrasse que não eram as casas humildes, mas nobres que destruíam, mas sim todo um património histórico de muitas vidas. Um legado dos antepassados. E assim começava uma nova arquitetura e mudança que caracterizou e marcou esta época por muitos territórios no nordeste de Portugal. O conforto e a irreverência da modernidade em detrimento da preservação. E assim muito património arquitetónico tradicional ficou perdido para sempre, dando início a um movimento e marca social representativa de uma época e evolução no território.

Mas naquele Verão a capeia no Soito realizou-se no novo redondel, no sítio do Lameiro do Soito, onde iria ser feita a primeira capeia. As calampeiras feitas com reboques, andaimes das obras, carros de vacas carregados com lenha, tudo servia para o povo poder assistir e espreitar de alto para dentro da praça. As calampeiras cerceavam todo o redondel da nova praça. E lá dentro lá estavam os tradicionais carros de vacas, dois carros cruzados e sobrepostos na cimalha, que eram colocados em cada lado do redondel, para acolher os mais foitos da praça.

Que grande capeia, houve naquele verão, com os bois bravos do Ti Zé Marrão do Soito, os quais já tinha adquirido há dois anos para fazer as capeias da raia.

Pela manhã foi o encerro. Foram buscar os bois à Devesa nos Urejais, onde estavam encerrados e vieram pelos caminhos da Serra do Homem de Pedra até à praça-redondel, onde tinham sido também construídas duas lojas para encerrar separados os bois e cabrestos para a capeia da tarde.

No alto da torre da igreja, no campanário, o Ti Maximiano, um sacristão muito foito e cheio de afición pelas capeias, espreitava para longe e para o alto da povoação, para assim que avistasse os toiros no Alto das Carvalheiras, começar a tocar a rebate os sinos, para avisar toda a povoação que os bois estavam quase a entrar na aldeia e alertando os mais distraídos do perigo. E assim que tocavam os sinos era um ver se te havias, tudo a recolher nas casas e outros a escolher a melhor calampeira para ver os bois passar. Que cortejo tão extraordinário e tão cheio de bravura, dezenas de cavaleiros, atrás e à frente do lindo curro composto por cinco cabrestos e os seis bois bravos.

Alguns dos bois já eram famosos na raia, o boi Amarelo, o Cego, o 24 e o 27, pelos estragos e os escornados que tinham apanhado em outras capeias, eram os mais temidos e faziam parte dos anseios dos foitos e dos menos foitos. Tudo era afición. Nenhum destes foi o boi da prova, após o encerro. Pois já todos sabiam da sua bravura e por prudência foram guardados para a tarde, não ficasse a festa logo estragada de manhã.

À tarde foi a loucura total, veio gente de todas as terras vizinhas!
– Onde há cornos há gente! – Diziam as pessoas!

Apareceram também naquela tarde o Chico Pequenote, o Alcino de Vale de Espinho, o Costa da Nave, o Jacinto de Aldeia do Bispo, o Romão de Aldeia Velha, o Luís e o Ramiro do Sabugal e  o Lampreia da Rapoula. Vieram também o Nabais, o Correia, o Orácio «sem H» e o Anacleto. O Mauzão de Rendo não apareceu. A malta do Outeiro tinha vindo toda para a grande capeia inaugural do redondel no Soito. Pois agora já havia mais espaço e melhores condições para se conseguir assistir pois quando era no largo da Praça, era mais complicado porque as calampeiras não chegavam sequer para os da terra.

No altifalante do recinto ecoava uma música fanhosa de indefinidos pasodoble, mas que davam ritmo e marcha à multicolorida, amontoada e concorrida multidão que já ocupava todos e qualquer espaço livre que havia nas calampeiras.

Forcão novo e construído para o efeito. Feito o cerimonial e tradicional pedido da praça, pelos mordomos que entraram no redondel todos a cavalo, que após forte aplauso se retiraram, voltando de seguida para pegar ao forcão. Pois o primeiro boi da tarde, era sempre esperado ao forcão pelos mordomos. Chamado o boi dos mordomos.

Os bois eram esperados em pontas e o perigo de vida era inerente à fiesta brava.

Avisaram que o segundo boi da tarde iria ser o amarelo e o passa-palavra de calampeira em calampeira gerou bruaás e frios gelados na espinha. Demorou a preencher os espaços do forcão e o suspense era imenso. Eis que a pouco e pouco primeiro os da galha e depois os do meio, e a pouco e pouco o forcão estava completo com as cerca de três dezenas de destemidos Soitenses.

Na loja dos bois ouviam-se embates e marradas contra as portadas e o silêncio aumentava na proporção do tamanho do medo.

Algumas mães e esposas gritavam para dentro da praça:

– Ó Manel sai daí! Tu tás doido! Olha que é o Marelo Home! Ah damantre se o boi te apanhar nem sabes o que te faço! Seu damanho! Rais ta partam!

Forcão já cheio de valentes e dos mais destemidos da terra! Venha de lá o boi! Touro fora! Eia que o bicho sai direto à galha esquerda dando uma forte marrada e fazendo uma ruidosa batida com o estalar das galhas que se fez ecoar pela praça, seguido de o típico berro da capeia:
– Aííí! Aíí! Aíí Boi!

Berro que se repetia cada vez que o Amarelo embatia numa das galhas! Ora à da esquerda ora à da direita! Quando de repente conseguiu enfiar os cornos por baixo das galhas inferiores, pois na dança rápida do movimento, houve um descuido dos rabiadores que tardaram em baixar o forcão e o homem da galha também não a conseguiu baixar e eis que o boi começou a forçar e querer furar, para passar e seguir forcão adentro e já a multidão gritava de medo antevendo mais uma tragédia do boi Amarelo na praça. Mas eis que num movimento sincronizado de força e circulação mais rápida que a do touro conseguiram rodar o forcão naquele sentido e libertar o forcão da cornadura, ouvindo-se de novo sons e grunhidos de euforia seguidos do respirar fundo de quem estava na praça, em sintonia com o respirar de alívio dos que pegavam ao forcão. Grande pega! E todos batiam palmas e soltavam urros de exultação, regozijo e deleite. Pega superada!

Não faltou a vaquinha para a pequenada e juventude e lá estava o Zeca e malta do Outeiro no meio da praça a desafiar medos e por à prova os dotes e a coragem das gentes da raia que começavam logo a treinar de pequenino.

E assim foram naquela capeia todas as pegas superadas, em que por milagre ou protecção do São Cristóvão, naquele dia, ninguém saiu ferido, embora tenha havido muitos e bons sustos e algumas marradas que trouxeram muita adrenalina e excitação a fiesta brava.

Com a chegada da noite, começavam a chegar ao recinto das festas em pequenos magotes de malta, chamados os Quintos, que eram todos os nascidos no mesmo ano que se juntavam para confraternizar naqueles dias e recordar os seus bons e velhos tempos.

Naquela noite o baile nas festas foi abrilhantado pelo Armando de Alfaiates com a sua concertina e para encerrar as festas de São Cristóvão actuou um conjunto que já fazia algum furor por Portugal, os Ferro & Fogo, que deixaram a malta nova toda extasiada com o potente som que saía das suas inovadoras colunas.

Passadas as festas e a capeia do Soito, que eram das primeiras a acontecer na Raia, iria começar o périplo das festas, arraiais e capeias e largadas pelas terras vizinhas. A capeia de Quadrazais já tinha sido no final de Julho. Seguiam-se Aldeia do Bispo, Ozendo, Vale de Espinho, Rebolosa, Nave, Alfaiates, Aldeia da Ponte, Lageosa, Forcalhos, Fóios, fechando-se o festival das festas e capeias em Aldeia Velha, no final de Agosto.

E para que a memória raiana siga o seu percurso e nunca se perca a nossa história, segue o desafio para o António Alves Fernandes que nos trará na próxima semana o seu testemunho!

:: ::
«Histórias da Memória Raiana», (episódio 7), por António Martins

:: :: :: :: ::

Os episódios das «Histórias da Memória Raiana» são escritos semanalmente por um autor diferente. Participaram até agora: António Emídio, Fernando Capelo, José Carlos Mendes, Ramiro Matos, António José Alçada, Franklim Costa Braga e António Martins.

Apesar de fazer referência a nomes e lugares verdadeiros da região raiana dos territórios do Sabugal esta é uma obra de ficção e qualquer semelhança com nomes de pessoas, factos ou situações terá sido mera coincidência.

José Carlos Lages

Partilhar:

  • Tweet
  • Email
  • Print
Capeia Arraiana
Capeia Arraiana

Diariamente desde 6 de Dezembro de 2006.

 Artigo Anterior O sonho de Amanda Gorman!
Artigo Seguinte   Casteleiro – estórias da vida e da Tropa! (8)

Artigos relacionados

  • Histórias da memória raiana (2.4)

    Domingo, 18 Abril, 2021
  • Histórias da memória raiana (2.3)

    Domingo, 21 Março, 2021
  • Histórias da memória raiana (2.2)

    Domingo, 14 Março, 2021

2 Comments

  1. Franklim Costa Braga Franklim Braga Responder
    Segunda-feira, 1 Fevereiro, 2021 às 18:36

    Gostei do texto, com muitas coisas da vida do campo que eu também já narrei. Gostaria que me esclarecesse de uns nomes. No Soito chamam soitenses aos seus habitantes? Em Quadrazais chamam-lhes soitenhos. Em Quadrazais chamam Rejais (pontão do Rejais) ao que você chama Urejais. Viu alguma vez essa palavra escrita? Eu vi Rejais como devendo ser Orjais (vidé Joaquim Manuel Correia). Estou interessado em esclarecer o verdadeiro nome do ribeiro, já que eu já escrevi sobre a possibilidade do nome de Quadrazais provir de Quadra+Rejais, embora não possua dados sobre a existência de povoação, mas apenas quintas, que julgo relativamente recentes, nesse local. Para mim o nome Quadrazais não vem de Côa mas sim de Quadraçales, isto é, matas povoadas de pedras de granito, nome que surge em Mirandela – a mata dos quadraçales.
    Uma boa tarde.
    Franklim Braga

    • António Martins António Martins Responder
      Quinta-feira, 4 Fevereiro, 2021 às 18:12

      Viva Sr Franklim, grato pelas suas palavras e interesse.

      É minha interpretação que, somos vistos por nós próprios (naturais do Soito) como Soitenses, vistos pelo pessoal do concelho como Soitenhos e, embora menos frequente, mas também há quem nos apelide de Soiteiros.

      Relativamente ao uso da topónimo “Urejais” e ” Côa-dos-Urzais” referenciado na estória, foi pura ficção e brincadeira com as palavras invocando alguns locais do nosso território.

      Escrevo estas “croniquetas” como lhe chamava o nosso saudoso conterrâneo, o douto, sábio e ilustre Dr Leal Freire, para me entreter e esperando, com este meu entretenimento, conseguir entreter outros. Não aspiro a cronista, mas talvez croniqueiro seja o meu melhor epíteto. Mas nunca jornalista e muito menos escritor, pensador ou intelectual da praça. Sou apenas um curioso que apenas quer expor e partilhar as suas reflexões e opiniões sobre o sentir do nosso território.

      Falta-me vida, experiência, tempo e maturidade para atingir saber e conhecimento mais profundo sobre o muito e o tanto que existe no nosso território e cultura, tal como tem sido o seu excelente contributo tanto aqui no Capeia e com obra já publicada. Talvez com algum engenho e esforço consiga seguir parte dos eu trilho, assim eu não me perca. Pois os conteúdos aqui publicados por si, serão concerteza um excelente legado para a posteridade sobre as nossas gentes e costumes. Bem-haja!

      Em todo o caso, já vi “Urejais” assim referido em alguns documentos oficiais.

      Nomeadamente nas cadernetas prediais das finanças surge registado aquele sitio como “Rojais”. No Soito também se diz Rejais ou Rojais.

      Para uso do topónimo “Urejais” pode ver um exemplo de documento oficial de projecto de âmbito municipal que refere a a construção de um Pontão sobre a ribeira de Urejais… (Aqui.)

      A menção da ribeira dos Urejais, é frequentemente usada nas crónicas deste grande caminheiro José Calixto que conhece muito bem todo o nosso território, o qual creio que se terá baseado nas cartas militares de 1/25000… (Aqui.)

      Nesta carta militar pode ver a referenciação aos Urejais (zona situada entre Quadrazais, Vale de Espinho e Soito) Surge também referenciado o ribeiro dos Rosais e não ribeiro dos Rejais ou Urejais… (Aqui.)

      Espero que ajude!

      Com elevada consideração
      Meu abraço dos 5inco costados
      António Martins

Leave a Reply Cancel reply

Social Media

  • Conectar-se no Facebook
  • Conectar-se no Twitter

RSS

  • RSS - Posts
  • RSS - Comments
© Copyright 2021. Powered to capeiaarraiana.pt by BloomPixel.
loading Cancel
Post was not sent - check your email addresses!
Email check failed, please try again
Sorry, your blog cannot share posts by email.