Na família dos Albertos todos eram pedreiros e a todos foi outorgado o cognome de Picas. E Picas porquê? Porque as suas mãos calejadas usitavam diariamente a picareta esgrimindo-a com atitude e mestria. Dir-se-ia que eram os poetas da pedra, tal a ternura com que desbravavam pedregulhos e quão aprimoradas eram as formas que, deles, conseguiam.

O Jaquim Alberto, Pica de corpo e alma, rude de aspeto, alto e forte, rosto queimado pelo tempo, era um dos mentores da arte de picar.
Ora, lá por meados dos anos sessenta, cansado de ver partir amigos para a estranja, amargurou-se, sim, mas também se encheu de rasgo e decidiu mandar-se a França levando na ideia a chance de abanar a árvore das patacas. Pediu empréstimo aos irmãos, rasgou de um envelope o remetente de um conterrâneo em Paris, negociou com o passador e ei-lo na caixa de um furgão com destino à cidade luz.
Dois dias passados, informado pelo chofer do termo do percurso e na convicção de encontrar o comparsa da sua aldeia num raio de escassos metros, saltou fora da carrinha ripando do bolso o papel com o endereço.
Mas, postos os pés no alcatrão, o movimento da grande cidade atordoou-o roubando-lhe, por inteiro, a crença na direcção. Por ali ficou, pois, estático durante várias horas. Olhava, atónito, a rua até ao cimo, mirava de alto a baixo as casa que a ladeavam decidido a esperar por algum passante conhecido.
Chegou, então, um jovem guedelhudo que desmontou de uma mota, cismado em encetar conversa. O Pica, exausto pela espera, não se manteve e foi ele próprio a abrir diálogo:
– Atão pá, não há barbeiros por aqui?
Ao que o cachopo respondeu:
– Há mais barbeiros que malta a cortar cabelo. E o meu amigo? O que o traz por cá?
O Pica estendeu-lhe a morada enquanto foi esclarecendo:
– Preciso de ir ter com um compincha da minha terra.
– Salte aqui para a mota que eu levo-o até lá.
De um pulo, o Jaquim Pica escarranchou-se atrás do outro, confortou-se no selim e seguiu caminho segurando com ambas as mãos as abas do chapéu.
A viagem foi de curta duração. Uns dez minutos, se tanto. Curvaram à direita no primeiro cruzamento, cruzaram um largo, contornaram um jardim, subiram uma rua, desceram outra e, subitamente, o cabeludo quedou a mota mantendo o motor a trabalhar:
– É aqui, meu caro. Desça lá se faz favor. São quinhentos escudos.
O Pica pôs a biqueira no passeio, vasculhou a algibeira em busca da nota solicitada e noticiou em voz alta:
– Ora aqui está ela.
Entregou-a ao motociclista e viu-o sumir-se na primeira esquina. Segundos depois, caiu em si, perdeu-se de nervos, encheu os bofes e goleou aos ares:
– Rais parta o gajo que já me cozeu. Voltou a deixar-me exatamente no mesmo sitio. Ai se o caço.
E se o caçasse… Desesperado encostou-se, então, a um poste para ganhar alento mas a polícia, solícita, veio indagar a origem dos berros. O Pica não percebeu palavra mas, pelos gestos, entendeu que devia entrar no carro.
Levaram-no à esquadra, deram-lhe o jantar, ajeitaram-lhe uma cama para dormir e no dia seguinte meteram-no no comboio com um papel na mão. Gesticularam por forma a que ele compreendesse que deveria seguir para Portugal mostrando aquele escrito sempre que fosse interpelado.
Vinte e quatro horas depois, já o Pica desembarcava em Vilar Formoso e seguia, a pé, para a aldeia. Ao espanto geral pela curta estadia em França, ia ele deslindando:
– Eu bem andei prá frente meus amigos. Mas, rais parta a sorte, a minha sina é de voltar sempre ao mesmo sítio. O dialho do mundo é bem capaz de ser redondo!
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«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
Sou das Cheiras, neto e filho dos ” Capelos dos Altares” ( Fernando Matias Capelo-meu avô, Raul Matias Capelo- meu tio e Antonio Amador Capelo-meu pai).
Sou jarmelista, do antigo concelho do Jarmelo.
Fico satisfeito por saber que gostou de ler e agradeço os parabéns.
Não sei quem ė o jarmelista, mas muitos parabéns pela crônica que acabei de ler . Obrigada por ter partilhado.