Hoje em Ruivós era dia da festa de São Paulo. Os filhos de Ruivós festejam o seu santo padroeiro a 25 de Janeiro. Quando a vida não nos permite ouvir os foguetes da alvorada o dia fica cinzento, triste e nostálgico. Estejam onde estiverem os ruivosenses sentem na alma o esvoaçar dos guiões ao longo do caminho que leva à capela de São Paulo e no coração o compasso da banda vai marcando os segundos da vida. O estoirar dos foguetes a rebentar no céu e o som dos sinos do campanário de Ruivós acompanham o nosso pensamento ao longo do dia.
Fotos: Manuel Monteiro e mordomos festa 2016
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O dia 25 de Janeiro é uma data muito especial para todos os que são da aldeia de Ruivós.
Apesar de ser uma das festas dos santos do «garruço» dos dias frios e gelados de Janeiro…, apesar de o dia da festa calhar quase sempre durante a semana…, apesar de…, apesar de…, todos fazem por estar presentes, venham de Lisboa, da França ou da Suíça.
E os mordomos? Quem são? Os mordomos da festa de Ruivós são três casais. Um por Ruivós, um por Lisboa e um pela França. Recolhem as esmolas, normalmente em Dezembro, visitando os ruivosenses nos seus «círculos eleitorais» e lançam a jogada para convidar o mordomo do ano seguinte. A recolha e o orçamento final atinguem (atingiam) os milhares de euros.
Nos tempos da minha meninice acordava cedo, sem ser preciso chamarem-me, e lá ia eu a correr até ao alto da estrada assistir à alvorada. E que alvorada! Nunca menos de uma hora! Os de Ruivós sempre fizeram da sua alvorada um «desafio» aos das outras terras. E as primeiras conversas dos grupinhos que se juntavam, batendo o pé para enganar o frio da geada da manhã, junto ao barracão do salão de festa andavam, invariavelmente, à volta «das dúzias»… «O mordomo disse-me que este ano tinham comprado mais dúzias de resposta e de tiro» esclarecia um. «Mas estes falham mais», assegurava outro. «Este fogueteiro não é tão desembaraçado», acrescentava ainda outro enquanto acompanhava com o olhar a subida de mais uma «cana». Dúzias de foguetes? Sim! O orgulho dos mordomos da Festa de São Paulo esteve durante muitas décadas nas centenas de dúzias de foguetes que encomendavam. E porquê? Porque o brilho da sua mordomia e das celebrações «media-se» pelo milhares de desenho das canas que subiam direitas ao céu e pelo ribombar dos «cartuchos».
No final da alvorada a nossa inconsciência de miúdos levava-nos (eu, os meus primos Domingos e Tó da tia Bárbara, o Paulo da Ti Clotilde, o Manuel da Ti Esperança, o Manuel do Ti Vinhó, o Armando do Ti Armindo, o Germano do Amadeuzinho e outros) a ir aos lameiros ao rebusco das bombas dos foguetes que não tinham rebentado. Depois fazíamos pequenos montinhos num barroco, colocávamos um pequeno seixo por cima e dum ponto mais alto deixávamos cair uma pedra grande fazendo rebentar a pólvora. Felizmentes nunca tivemos nenhum acidente grave. Coisas de miúdos!
Tenho muitas recordações das festas de São Paulo. A geração dos meus pais, ano após ano, quase todos migrados (Lisboa e França) tudo faziam por nunca faltarem. Acho mesmo que os meus pais todos os anos marcaram presença. Por vezes os meus professores faziam pontaria ao dia 25 de Janeiro para marcar um teste mas… os meus argumentos para que mudassem para outra data eram quase sempre mais fortes. Quando estava no curso na Base da Ota lá fui e vim de comboio mesmo sabendo que só lá passava pouco mais de 24 horas.
A festa tem início alguns dias antes com os preparativos e embelezamento dos andores, da igreja e das capelas de São Paulo e da Senhora da Graça. Na noite anterior a procissão das velas vai buscar o andor de São Paulo à capela do cemitério. Antigamente era feita na manhã do próprio dia 25. Ao final da tarde é feita a procissão de regresso. As procissões fazem-se sempre. Por vezes à chuva ou com neve mas e sempre com muito, muito frio. Antigamente (parece que agora também é proibido) haviam, à saída e entrada das capelas, as arrematações dos andores com as imagens dos santos. Sempre me emocionou aquela cantilena da «perna direita da frente, uma… perna direita da frente, duas… perna direita da frente… três!» ou… « e a perna esquerda da rectaguarda? Quem tem devoção?» e no final… «E agora vamos ao guião de São Paulo… Quem dá mais?» E assim se pagavam promessas e por vezes assim se mostrava estar a ser bem sucedido na vida.
Fazia parte da festa! Era a festa! Mas o bailarico à noite também é a festa. No bar as minis não precisam de frigorífico. Nas noites de Janeiro só era (é) preciso deixar o bidon com água do lado de fora do salão… E durante toda a noite é preciso bailar para aquecer que a geada cedo faz a sua aparição. Apenas os foguetes de lágrimas, por volta da meia-noite, conseguem parar as modas e os dançarinos e fazer com que todos saiam do salão de festas. O momento alto da noite era o «baile mandado à moda de Ruivós», ano após ano superiormente orientado pelo Manuel da Edite que vive perto de Paris. Dois apaixonados pela dança, o Ti Manel e a Ti Edite, passaram às filhas Yvette e Anne-Marie o dom e a paixão pela dança. Eu, com muita pena, ficava a ver… porque aquilo era mesmo para especialistas com muito treino.
E o frio? E o gelo? E o antigo caminho cheio de lama que levava ao cemitério e à capela do orago São Paulo? O arqueólogo Marcos Osório refere no seu livro «Ruivós, a antiguidade de uma freguesia» que o cemitério «tem interesse histórico e artístico com um edifício do estilo românico, com traços de mesquita, com diversos modilhões ou cachorradas, tipicamente românicos, ponto de passagem nos tempos remotos de um corredor de sentido norte/sul, com passagem pelo vale de Ruivós e com alinhamento viário em direcção à ponte de Sequeiros, um dos pontos mais importantes de passagem do Côa».
Assim eram dantes. Agora menos. E neste ano de 2021 nem festa, nem missa, nem procissão, nem ajuntamentos, nem a tradicional volta às adegas a provar o vinho novo. Tudo o vírus levou nesta batalha terrível em que somos assistentes e protagonistas no presente. No entanto acredito que vamos voltar a festejar, de mãos dados e com muitos abraços e afectos, a festa de São Paulo, um cidadão de Tarso que um dia ouviu na estrada de Damasco uma voz que lhe perguntava: «Saulo, Saulo, porque me persegues?»
Memórias… boas memórias!
Viva São Paulo! Viva Ruivós! Vivam as tradições da identidade sabugalense!
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«A Cidade e as Terras», opinião de José Carlos Lages
(Fundador e Director do Capeia Arraiana desde 6 de Dezembro de 2006)
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obrigada Carlos Lages pour estas boas lembrancas, escouta meu rapaz, o teu pai, teu avô, tua mãe e a tua avó, os meus pais que boas lembrancas. Eu estive pouco tempo en ruivos mas soube apriciar esta boa festa de Ruivos. O bailarico da noite era terminado na casa du ti Bonifacio e as raparigas la estavam a espera pois claro o meu pai nassa nuite nao nos deixava sair, e assim se passava uma semana a bailar, e digo-te que o teu pai e mãe sabiam come se dançava. Hoje é diferente, já a tudo mas nos con um caldeiro dancava-mos, e que grande alegria, continua a mandar recordacoes, un grande obrigada
Sábado, 26 Janeiro, 2008 às 10:13 pm
ernesto pina
O teu artigo faz-nos regressar à nossa meninice. Eram assim as festas de antanho, onde se estreavam as roupas e sapatos novos e era vê-los apanhar as canas dos foguetes. Ninguém dormia só a pensar na vinda das amendoeiras. Era comprar amêndoas, cornetas e santinhas de açúcar de pendurar ao pescoço por aquele atadilho tão particular… Como é que pessoas tão humildes como “o esfola” da Bismula, aquele amendoeiro com os produtos expostos num tabuleiro, era um gigante aos nossos olhos. Tantas vezes imaginei e invejei aquela casa toda ela cheia de iguarias… Os tostões eram guardados nas caixas dos fósforos e mal rompia o dia lá andava aquela revoada de canalha aos bandos a espreitar a chegada das amendoeiras… Aqueles balões enchiam e povoavam todo o nosso imaginário…
Quanto à Câmara, o que dizes não é nada que não se possa esperar. Dali já não sai nada… Estas coisas passam-lhe ao lado. É o cansaço do poder que também aborrece e não há paciência para aturar chatos.