Antes de anunciadas as medidas drásticas de um novo confinamento geral, tive necessidade de percorrer alguns espaços, ruas, avenidas, largos… Tive necessidade de sair do meu cantinho rural, um pequeno espaço agrícola, para percorrer, estacionar, carregar, descarregar, parar, falar com diversos interlocutores, observar e anotar algumas situações comportamentais.

Andava nesta lide de transportar móveis, livros, roupas – e tudo o que é necessário para o funcionamento de um novo lar – quando me deparei com um idoso. Chapéu à Charlot, interpelou-me:
– Com este frio de rachar os ossos, só se está bem encostado a este prédio. Aqui bate sempre o sol. Já reparou que o sino da Igreja Matriz deixou de nos dar as horas? Será que também está com medo do coronavírus?
– Desde que não toque de finados…
Num jardim dos caminhos de Santiago, dois irmãos gémeos, utentes da Santa Casa da Misericórdia do Fundão, também se abrigam ao sol, bem protegidos com duas gorras bascas. Aí dormitam, esperando que o tempo passe…
Cruzo-me com uma idosa. Além das mazelas que a idade lhe avançou, está chorosa porque foi na conversa da «banha da cobra» dos muitos canais televisivos que apelam «ligue já, faltam dois minutos, não perca esta oportunidade». E lá se foi a parca reforma em chamadas telefónicas:
– Vivo sozinha, passo horas a ver televisão e distraí-me…
Tarda uma legislação que norteie normas para pôr cobro a este tipo de chamadas de valor acrescentado, que proteja os incautos e indefesos, sobretudo os mais idosos.
Um grande sinal de crise é o «formigueiro» que se aglomera junto às casas de jogo da Santa Casa, ou melhor, da Rica Casa. Nas vitrinas o chamamento das Raspadinhas, do Baú das Pérolas (não se sabe a sua cor), do Cubo do Galo ou do Cu do Galo, da Recompensa (não se sabe qual), dos 41 Milhões esta semana… dos 61 Milhões, se for ainda hoje. Para ali caminha gente de todas as classes sociais e de todas as idades. Todos à espera de transformar ilusões numa bazuca de milhões, por entre milhões de concorrentes…
Surge um amigo, ex-camarada militar da Guerra do Ultramar. Também está à espera do tão falado Cartão do Combatente…
– Não se sabe quando chega e como chega, porque ninguém explica…
– E que me diz desta «guerra»?
– Olhe, é o que vê, máscara na cara para defender a nossa saúde e a dos outros. Lá sabíamos onde se encontrava o inimigo, aqui desconhecemos o seu paradeiro. Só sabemos que está junto de nós.
No largo da igreja, um banco meio escondido serve de mesa de refeição a três jovens adolescentes. Partilham, envergonhadas, um prato de esparguete sem conduto…
Na fila de uma grande superfície as pessoas respeitam as distâncias sanitárias. No entanto, uma senhora toda aperaltada e empertigada pede à pessoa atrás para se afastar, obtendo a seguinte resposta:
– Peço desculpa…. É a sua beleza, senhora, que me fez esquecer por momentos o vírus…
Passo no passeio por uma avó, que me saúda com ar muito triste. Há mais de uma semana que o seu neto não tem aulas primárias presenciais, porque esteve com um familiar infectado:
– Já fez três testes, todos negativos graças a Deus, hoje vai fazer o quarto. O meu menino anda ansioso. As crianças sofrem muito com isto…. Vai deixar marcas., ai isso vai…
Segue-se um desempregado desde setembro/2020:
– Trabalhava numa empresa que teve de despedir pessoal. Ainda não recebi o subsídio de desemprego. Tenho três filhos, sobrevivo com algumas ajudas. Estou à procura de trabalho, mas não está fácil. Fiz um ou outro biscate na apanha da azeitona, faço na construção civil.
A caminho da carrinha para mais um carregamento, encontro um conhecido comerciante de roupa:
– Estou muito preocupado… Desde Março do ano passado que quase ninguém faz negócio.
Pede-me que entre no seu armazém, repleto de roupas…
Olhando pelo postigo de um café bem localizado na cidade, vejo o interior vazio e a esplanada com todas as cadeiras e mesas empilhadas. Ouço os desabafos revoltados do proprietário:
– Querem acabar com tudo! Amanhã já nem posso servir cafés aos meus clientes. Só daqui a muitos anos os sobreviventes vão voltar à normalidade. Espero ser um desses sobreviventes, porque muitas lojas e estabelecimentos serão obrigados a fechar de vez. Morre-se da doença e morre-se da cura, não é? Morremos se abrimos e morremos se fechamos.
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«Aldeia de Joanes», crónica de António Alves Fernandes
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