O céu apronta tormenta. Já escureceu, mesmo antes da hora do sol pôr. O toque das Trindades ainda não soou, mas os chocalhos tilintam fazendo adivinhar o trote mais acelerado do gado a arribar dos lameiros.

Ouve-se o apressar à Mourisca, à Castanha… que pararam no bebedouro do chafariz antes de se arrecadarem na loje! O burrito ainda tenta um espojar demorado, mudando logo de idéia, ao ouvir o zunir da verdasca no ar.
Os catraios saíram da escola em traquina correria e procuram algumas pocinhas deixadas pela chuva da manhã para achancar com as botas de borracha, pois é escusado pensar em que haverá tempo para um joguito do motcho ou da pedrincha antes da chuvada desatar a cair.
À chegada, encontram os pais a subir as escaleiras com braçados de galhos e uns cavaquinhos mais grossos para o lume aguentar o serão. Também eles se disponibilizam para ajudar.
E o vento gélido depressa varre da rua a criançada, os animais e toda a vida que flutua até ao sol se esconder no horizonte, em dias mais amenos.
Só se sabe da existência de vivalma, pelos fumos que esvoaçam das chaminés sobre os telhados e pela luz mortiça dos candeeiros ou candeias acesas que as vidraças das janelas deixam adivinhar.
De vez em quando ainda foge um negro xale a caminho da taverna do Ti Zé dos Pilos, ou do comércio do Senhor Anacleto, em busca do homem que por lá se deixou demorar ou, então, de um poquenino de açúcar ou café que não houve tempo de ir mercar.
Mas cá dentro há vida. O lume crepita no lar. A ceia já fumega e puxa-se a mesa para junto da chaminé. Há caldo escoado e pimentos curtidos e castanhas assadas, pois não tardarão a gear se não forem comidas a tempo.
Arreda-se a mesa, lava-se a loiça e começa o serão. O fuso enrola o fio puxado da roca enquanto se reza o terço. A tia cochila e pergunta em que mistério vamos. E, para seu grande espanto, mais uma vez falta só o último… «Ai que soninho tão lindo!», «Quase não dei pelo terço!…»
Pudera, é que, como quase sempre, mal tínhamos rezado o primeiro mistério!
O tio pergunta-me a lição que fiquei a estudar enquanto ele foi ordenhar a Tourina e colocar-lhe uma faixa de feno na manjedoura. Ainda joga o estanderete comigo enquanto aquece a sua botija de barro, antiga garrafa de «anis escartchado» que se trouxera de Navasfrias, num outro Natal passado.
A tia enrola a minha pedrinha quente numa velha camisola de lã e, depois, num já gasto pano de linho. Pega no candeeiro de mão e leva-me ao quarto. Aconchega melhor a enxerga de folhelho e mete o embrulhinho entre os lençóis de dois panos, que ela cultivara, espadalara, fiara e tecera. Eu tiro o vestido e sento-me na cama. Peço-lhe a bênção e encosto os pezitos frios à minha pedrinha que me aconchega num doce dormitar de sonhos que nem sabem que lá fora neva.
:: ::
«Gentes e lugares do meu antanho», crónica de Georgina Ferro
(Cronista no Capeia Arraiana desde Novembro de 2020)
:: ::
Gostei muito deste seu texto. Os meus parabéns. E faço votos de que prossiga neste caminho, continuando a regalar-nos com novos trechos, tão belos como este, e que como este, consigam igualmente chegar ao âmago e à essência das vivências do dia-a-dfa de quem habita no interior deste País.
Leio as suas crónicas com enorme prazer. Encantam-me os temas, a precisão dos termos, os poemas…
Bem haja por me transportar à infância.
Parabéns pelo texto Georgina Ferro!
Faz-me recordar os meus tempos de infância na Lageosa da Raia.
Abr.