:: :: FRANKLIM COSTA BRAGA :: :: No primeiro episódio o António Emídio «apresentou-nos» a família do Luís do Sabugal quando este se preparava para ingressar no Outeiro de São Miguel. Seguiram-se o Fernando Capelo, o José Carlos Mendes, o Ramiro Matos e o António José Alçada. Esta semana o quadrazenho Franklim Costa Braga acrescenta mais uns carregos à estória. (Episódio 6.)

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HISTÓRIAS DA MEMÓRIA RAIANA
Episódio 6
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O CHICO DE QUADRAZAIS
Saiu de casa, bem cedo, com o pai no velho Ford do ti Barreiro para apanhar a carreira para a Guarda. Vestia calças pretas de pana, uma jaqueta, boina à basca encomendada em Valverde, e botas novas.
O Chico, conhecido pelos familiares como Chiquinho, tinha acabado a 4.ª classe em Julho, tendo passado com distinção no exame no Sabugal com o Professor Cavaleiro. O pai destinava-o a seu ajudante no comércio. Mas o professor Evaristo falou com ele e aconselhou-o a que o mandasse estudar, já que tinha boa cabeça para os estudos. Após uns dias a pensar no que deveria escolher para o Chiquinho, aconselhando-se com quem conhecia o colégio do Outeiro, decidiu enviá-lo para lá.
– Que achas, Chico? Queres ser professor?
– Não sei bem, mas gosto de estudar.
– Então, vai-te preparando, que dentro de dias partimos para o Outeiro.
Chegou lá com um grande malão. O porteiro chamou o empregado para lhe levar a mala. À entrada estava o padre Geada que lhe perguntou:
– Como te chamas?
– Chico.
– Donde vens?
– De Quadrazais.
– Bem me pareceu que vinhas de terra de contrabandistas! E este senhor? É teu pai?
– Sim, é.
– Muito prazer em conhecê-lo.
– Deixo-lhe aqui o meu Chico. Tratem-no bem. Espero que se porte bem, senão estiquem-lhe as orelhas, se for preciso. Eu vou andando. Adeus, Chico!
No corredor, em frente à portaria, estava um grupo de alunos mais velhos que, mal viram o Chico, começaram por baptizá-lo. Como era franzino, o que lhe valera na escola a alcunha do Fuínhas, um do grupo baptizou-o logo como o Pequenote.
– Mas já me chamavam Fuínhas na escola!
– Pois passas a chamar-te Pequenote.
– Eh! Vieste hoje de Espanha?
– Não, nunca fui a Espanha.
Um deles surripiou-lhe a boina e atirou-a pelo corredor como se fosse um disco. Veio a saber mais tarde que se tratava dum aluno de Rendo conhecido pelo Mauzão.
– Ouviste teu pai a pedir que te arreassem? Eu tratarei de ti.
O Chico ficou logo mal impressionado com esta recepção e ficou de olho no Mauzão, com quem antipatizou de imediato. Este era, de facto, trombudo.
Após arrumar os seus pertences, foi encaminhado para uma sala, onde já se encontravam o Zeca, do Soito, o Alcino, de Vale de Espinho, o Costa, da Nave, o Jacinto, de Aldeia do Bispo, o Romão, de Aldeia Velha e o Luís, do Sabugal. Pena que não houvesse nenhum outro quadrazenho para poder empregar uma ou outra vez a Gíria. Mesmo assim, o Chico começou a sentir-se um pouco mais em casa, rodeado que estava por colegas de bem perto da sua terra. Mas isso não impediu as saudades de ter deixado Quadrazais e os seus amigos do bicho, da choina, da bola, de pôr carbureto a arder nas poças de água e atar latas ao rabo dos cães. Recordou a despedida na véspera das tias e da madrinha.
– Madrinha, deite-me cá a só bênção!
– Que Deus te abençoe!
Mal dormira durante a noite, com medo de não acordar, e a pensar como seria a sua entrada no colégio.
– Em que pensas, Pequenote? Não te sentes bem aqui connosco? – atirou-lhe o Lampreia, alcunha do Quim da Rapoila*.
– Estava a pensar numas coisas!
– Deixa de pensar na morte da bezerra e vem jogar connosco.
– Já vamos daqui mais um pouco.
E, pela mente do Chico, perpassavam os últimos conselhos do pai e da mãe:
– Vê lá, não estragues as botas na bola! Nada de ser como o estronca-brotchas da Rebolosa. Estuda bem para seres um home. Porta-te bem, senão arranco-te as orelhas.
Tudo entraria nos eixos com o tempo.
– Vamos lá então jogar.
Dirigiram-se ao recreio. O Chico ficou admirado em ter um campo de futebol com balizas de ferro. Nessas é que ele iria meter golos. Mas invadiu-o uma certa tristeza…
– Será que os colegas me vão querer na equipa sendo eu baixinho?
Assim aconteceu nos primeiros dias. Ele ia-se aproximando de alguns grupos que se entretinham nas mais diversas brincadeiras, como o jogo do belindre.
Um dia, antes do jogo da bola começar, pediu ao Zeca, que haviam baptizado de Patanisca, que lhe deitasse a bola. Apulou-a no pé, sem a deixar cair, e começou a dar toques sem a deixar cair no chão. Alguns apreciaram-lhe as habilidades e, no dia seguinte, convidaram-no a integrar a equipa contra os do 2.º ano, onde estava o Mauzão. Não tardou a meter um golo. O Mauzão, enraivecido, começou a rasteirá-lo, mas ele foi-se desviando. Ganhou a estima dos colegas. Alguns já nem lhe chamavam Pequenote e defendiam-no contra as investidas do Mauzão.
Em vésperas do primeiro de Novembro recordou-se dos magustos que a rapaziada fazia nesse dia em Quadrazais e do jogo das contras ou cabeças entre a assadura das castanhas. Jogou com os seus colegas, que não conheciam esse jogo.
A madrinha mandou-lhe a rosca que se dava aos afilhados nesse dia. Comeu um bocado.
– Ah! Que bem sabe! Obrigado, madrinha.
Guardou o resto no seu cacifo. No dia seguinte foi pela rosca mas, onde está ela? Alguém lha havia roubado. Perguntou por ela ao Mauzão.
– Eu nada tenho a ver com o roubo. Devem ter sido os ratos que te a comeram – atirou-lhe o Mauzão.
O Chico ficou convencido que fora mesmo o Mauzão.
– Oxalá te dê uma caganeira! – disse para consigo.
Nesse dia feriado foi passear com alguns colegas atravessando a Arrifana. Meteu-se com uma bonitota que estava à porta de casa, dizendo-lhe um piropo. A resposta foi:
– Cresce e aparece, baixote!
Sempre a ser gozado pela sua fraca estatura. Haveria de crescer e, então, apareceria.
Jurou a si mesmo que haveria de ser o melhor da turma e que haveria de ser alguém para contrabalançar o ser baixote.
Nas aulas sabia sempre as respostas, mostrando ser o melhor da turma.
– Pequenote, mas grande de cabecinha! – diziam-lhe.
Mais um motivo de admiração perante os colegas. Aconselhado a substituir a boina para o frio, nas férias de Natal o pai arranjou-lhe um garruço à moda da zona de Fátima. Trouxe de casa uns luvetes feitos pela mãe e uns caturnos às amêndoas, como presentes de Natal, agradada com as notas do primeiro período. Retomou a vida normal no colégio.
Num jogo de bola o Mauzão deu-lhe uma tal rasteira que o fez cair com estrondo e lhe partiu um braço, para além de esfolões. O enfermeiro botou-lhe álcool nas feridas.
– Ui! Escose muito!
Deram-se conta que o braço estava partido e tiveram de o levar ao hospital da Guarda, onde o engessaram. Felizmente era o braço esquerdo e assim poderia escrever com a mão direita.
O Mauzão foi duramente castigado e ameaçado com expulsão. Mas o maior castigo do Mauzão surgiu dias depois no recreio. Isolaram-no e deram-lhe pontapés e chapadas, a ponto de ficar com um olho negro.
– E caluda, hem! Senão ainda levas mais.
O padre Geada, ao vê-lo de olho negro, perguntou-lhe:
– Quem te fez isso?
– Fui eu que fui contra o poste da baliza – respondeu, lembrado das ameaças de nova sova.
Daí em diante o Mauzão nunca mais se aproximou do Chico.
Chegou o 10 de Junho. Como se seguia um fim-de-semana e mais um feriado, arriscou ir passar o Santo António a Quadrazais. Má hora o perseguia. Na procissão, um foguete caiu junto dele sem estoirar. Pegou nele e…
– Pum! – O foguete rebentou, levando-lhe o indicador direito e esfrangalhando-lhe o do lado.
– Acudam! – clamava a mãe.
Levaram-no ao hospital do Sabugal, onde o Dr. Adalberto lhe teve de cortar a falanginha e falangeta do indicador e, a custo, lhe coseu o dependurado pai de todos. Pobre indicador, já tão massacrado por ter sido queimado a sangue frio pelo Dr. Armando do Soito por ter um carbúnculo cheio de pus.
– Como vou escrever agora? – Lembrou-se de outros que também tinham dedos cortados, como o Câmbio, que os perdera nos dentes duma nora. Se ele sobreviveu, eu também me arranjarei.
E lá seguiu no outro dia para o Outeiro, de braço ao peito. Muitas perguntas lhe fizeram os colegas sobre o sucedido. Confortaram-no e lamentaram ter perdido por esse ano um tal avançado no jogo da bola. Só o Mauzão rosnou:
– Bem feita! Para além de baixote, agora és dedêta!
Felizmente, o ano estava a acabar e tinha a passagem garantida.
Foi de férias, jurando que haveria de continuar a ser o melhor, mau grado tanta desgraça.
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A vida parece não estar a correr pelo melhor ao pequenote Chico de Quadrazais que partiu um braço a jogar à bola e viu estoirar-lhe um foguete na mão. Para a semana vamos saber o que pensa o António Martins de tudo isto…
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«Histórias da Memória Raiana», (episódio 6), por Franklim Costa Braga
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Os episódios das «Histórias da Memória Raiana» são escritos semanalmente por um autor diferente. Participaram até agora: António Emídio, Fernando Capelo, José Carlos Mendes, Ramiro Matos, António José Alçada e Franklim Costa Braga.
Apesar de fazer referência a nomes e lugares verdadeiros da região raiana dos territórios do Sabugal esta é uma obra de ficção e qualquer semelhança com nomes de pessoas, factos ou situações terá sido mera coincidência.
José Carlos Lages
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