Este artigo, continua na senda da História recente de Angola, com ficção literária visto ter sido muito jovem quando estes factos se terão passado. Uma das figuras angolanas que mais admiro, o Lúcio Lara, escreveu uma trilogia sobre a história da resistência que culminou na independência. É igualmente um documento interessante do ponto de vista histórico para nós portugueses.
Curiosamente Lúcio Lara foi muito activo durante o período de libertação, mas após o falecimento do Dr. Agostinho Neto, sendo aliás muito próximos, afastou-se dos palcos da governação. Infelizmente há muitos angolanos, e angolanas, que não sabem que Lúcio Lara ainda foi Presidente da Républica Popular de Angola uns meses entre a transição do Dr. Agostinho Neto e o Eng.º José Eduardo dos Santos. Após esse período, apenas assumiu cargos no seu partido e ser professor.
Sendo um «Pastor» gosto de caminhar na natureza. Por estas bandas acham-me doido sobretudo por causa das cobras. Porém, até hoje, eu e as cobras temos tido boa convivência.
As margens do rio Cuango são algo que me encantam. Não é só o barro e o potencial diamantifero, mas o verde alegre como a dar um sinal que estamos vivos, mesmo sabendo que neste dia, há 60 anos, foram mortos muitos trabalhadores angolanos de algodão, um pouco mais a jusante, na provincia de Malanje. Queriam melhores salários, o que ganhavam não lhes permitia pagar a renda e comer.
Ao sentar-me numa das pedras para inspirar o ar puro, olho para a esquerda e vejo um homem magro, com uma boina preta na cabeça. Fazia lembrar os bascos.
Faço-lhe um adeus, cumprindo o ritual da Lunda. Aqui ninguém deixa de ser cumprimentado, sendo mesmo «falta de educação» quando o não fazemos.
A resposta não se fez esperar. Acenou-me com um livro na mão. Estaria a ler. Eu acenei-lhe com a minha lapiseira vermelha, que a uso desde o Técnico. Adoro escrever a lápis.
Estava a tentar concentrar-me quando o vejo perto de mim.
Era magro, com uma barbinha ligeira, mas a voz era suave. «Por acaso não teria água?» Era o propósito da visita. De facto muitos angolanos sofrem por uma garrafa de água potável para beber.
Ando sempre com uma garrafa de litro e meio, mas já a tinha usado. Esses problemas só mesmo na Europa. Bebeu-a quase toda deixando apenas um resto por cortesia, não me deixando de agradecer, com toda a educação.
Reparei que estava a ler um livro de Einstein, em língua francesa. Na realidade um livro de física só mesmo naquele ambiente. Naturalmente começámos a falar. O meu interlocutor era físico e até tinha estudado na Faculdade de Ciências, em Lisboa. A vida, porém, não permitiu concluir. Mas leccionava no chamado «médio» que corresponde ao secundário em Portugal.
O angolano é muito cauteloso quando fala com um português de cabelo branco. E na realidade, assim aconteceu. Eu falava mais da minha vida do que o meu novo amigo.
Com o desenrolar da conversa percebi que teria privado com o Dr. Agostinho Neto, e foi por sua mão que conheceu as terras da Lunda. Não sei se por política, ou se por paixão, o facto é que este homem vinha muito para aqui, ler e ouvir o barulho do vento ou da chuva.
Conversa ia seguindo, tendo-me confessado que seu pai era português. Com algum receio, muito suavemente tocou no problema da administração portuguesa, num dia que ninguém queria recordar.
Não vi qualquer problema. Aliás, por muito que se note a nossa «passagem» por estas bandas, culturalmente, nada temos que ver. O melhor foi mesmo cada um seguir o seu caminho, em 1975.
Este meu amigo foi um resistente. E combateu muito pela libertação do seu povo. Porém, sentiu que seria essa a sua missão, afastando-se do palco do poder, por opção, logo após a independência. Adorava ensinar e política não era bem a sua vocação, não escondendo que era militante no activo.
Não sabia bem o que dizer. Na realidade, nós portugueses, várias vezes lutámos contra a ocupação de forças estrangeiras e que, culturalmente, até tinhamos mais afinidade. Por isso, nada de preconceitos.
Achava-lhe piada era como coçava a barbinha. Quando se sentia incomodado o tique era mexer no tufo de pelo junto ao queixo.
Infelizmente ainda há conversas difíceis entre nós e os angolanos mais velhos. E logo neste dia. Mas o tempo é um grande amigo, aliado e tem um poder fantástico de curar. O tempo ajuda a perdoar!
Senti nele uma matriz de complexidade. Queria perdoar, mas achava que não podia ser na sua geração. Talvez depois. E acreditava que sim, seria possível.
Pediu-me licença mas tinha de continuar. Levantou-se, apertou-me a mão, agradeceu a água e o momento de conversa e partiu. Desapareceu no meio do nada, no sentido de Cassanje, mas deixando-me a pensar como já tinha matéria para escrever este texto.
Ainda corri um pouco atrás. Esqueci-me de lhe ter perguntado o nome.
Pára, sorri e bem alto grita: «Lúcio!» E segue, depois do breve «adeus».
Cuango, 4 de Janeiro de 2021
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«No trilho das minhas memórias», por António José Alçada
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Junho de 2017)
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Figura interessante, o Lúcio . Mais uma memória no teu trilho, sem dúvida! Bjs
Grande Kamba, palavras para quê? estás integrado com esse povo irmão e queres para eles o mesmo que queres para ti; queres viver em paz, solidariedade e fraternidade com as pessoas. Votos para a boa continuidade das tuas descobertas, as quais vou lendo atentamente. Como sabes, sou português mas também me sinto angolano, porque vivi e trabalhei aí durante cerca de 20 anos, desde 1978 até 2020. Falo de um povo e de um país onde sempre me senti bem tratado e onde aprendi a conhecer o valor da evolução social. Desejo o melhor de tudo para ti e para os angolanos. Abraço
Q interessante o Lúcio. Mais interessante ainda a coincidência de o teres encontrado. Um passeio feliz.. Conselho: passa a levar 2 garrafas de água ?