Desde sempre me lembro dela e tenho no ouvido os guinchos de morte dos marranos. Criados foram uns em pias com abrótea, batatas, couves, botelhas (abóboras) e tarrábias (beterrabas), para além das ervas ruins tassóis, corrióis e boldregas (beldroegas), todas misturadas no caldeiro ao lume, até atingirem sete ou oito arrobas; e comprados foram outros já criados uns dias antes da matança ao Tó Lórenço, que os trazia do Alentejo.

Chegado o dia, convidavam-se familiares, vizinhos e amigos para a festa. Sim, era uma autêntica festa, embora limitada a alguns. O marrano ficava em jejum desde a véspera. Não sei se adivinharia a morte próxima.
De acordo com o ditado: «Pelo Santo André, agarra o marraninho pelo pé», agarravam-no pelo pé, rabo e orelhas, colocavam-no em cima de um banco comprido ou sobre grossos ramos de castanheiro ou carvalho, atavam-lhe o focinho e as patas e, bem seguro, o matador espetava-lhe o faím, ao som de roncos cada vez mais fracos, até dar o último suspiro. Apulavam-lhe o sangue num alguidar com sal que serviria para fazer as morcelas. Depois de exalar o último suspiro, baixavam-no do banco e faziam do porco um limpinho, queimando-lhe os pêlos com almieiras de palha, regando-o com água quente, esfregando-o com pedras de granito, lavando-lhe bem as orelhas, tirando-lhes a porcaria do rabo com uma mão cheia de palha e arrancando-lhe as unhas sujas. Assim, limpinho como nunca esteve enquanto vivo, era colocado na loije dependurado dum chambaril. O matador abria-lhe o seventre e retirava-lhe as tripas que as mulheres iriam lavar num ribeiro para servirem para encher morcelas e bucho. Os miúdos aguardavam à porta, vigilantes, para não deixarem fugir a passarinha (a vesícula), que iriam comer assada, primeiro que todos, para irem divertir-se, jogando o pião ou a choina.
Depois de lhe retirarem o fígado, que iria servir de prato principal no jantar (almoço das cidades) com batatas cozidas, regado com abundante vinho, deixavam-no dependurado uns dias a escorrer sangue e água até fazerem a desmancha, operação em que era separada a carne gorda (o toucinho) da febra, esta para fazer chóricês, e cortavam uma ou duas massas da perna para deixar para presuntos. Pés, orelhas, carne gorda, cabeça e outras peças guardavam-se na loije, mais fresca, na arca salgadeira, envoltas em muito sal para as conservar até ao Verão. A massa da perna era bem amassada em sal e pimentão para não lhe entrar o bicho e ficava dependurado na loije até amadurar.
Após o almoço, as mulheres começavam a fazer a massa das morcelas. À tardinha mandava-se uma tigela dela a alguns amigos. Só uns dias mais tarde se faziam as chóricês e os farrenheiros (farinheiras), estes à base de pão e pedacinhos da gordura do marrano, com algumas especiarias misturadas no barranhão. Enchidas as tripas do marrano ou compradas no comércio do ti Barreiro, eram escorridas e depois dependuradas em varais na cozinha para que o calor do lume as secasse e ficassem prontas para ir à mesa. O enchido também servia para oferta da janeira. Algumas famílias faziam uma chóricê de metro, dobrada, para oferecerem ao Senhor, a qual seria arrematada na Praça.

Estes animais caseiros, que iriam alimentar ao longo do ano os donos que os haviam alimentado, merecem uns versos…
A Matança
Reco, reco, sem emenda,
Chama a dona pelo porco.
Saíu da cortelha à rua,
Julgando também ser sua.
Vem comer tua vienda!
Batatas, tarrábias, couves,
Botelha, nabos, tassóis,
Boldregas, abrótea, ouves,
E também alguns correóis,
Tudo tem tua vienda.
Come, come, seu lambão,
Transforma tudo em carne,
Que um dia me hás-de dar
Para eu me alimentar.
Come agora, porcalhão.
Logo pela manhãzinha
Se ouvem guinchos de aflição.
Pobre marrano orelhudo,
Acabou-se-te a ração.
Pára os guinchos. P’rà mesinha!
Que bem sabem as morcelas,
Farrenheiros e chóricês!
Graças a ti, meu porquinho,
Estou eu aqui gordinho,
Por comer eu sempre delas.
P’ra não falar do presunto,
Petisco para visitas,
Afastado da janela.
E também do rico unto
Com que se alinha a panela.
No Inverno sabe bem
Comer teus pés com feijão.
E ainda a carne gorda
Deitada em cima do pão.
Tudo me deste também.
Com a tua passarinha
Brindaste muitas crianças.
Febras assadas na brasa
São de apreço para a pança.
Muito obrigado, porquinha!
E que dizer das chóricês,
Para não falar do bucho?
Um petisco com bons grelos
E com vinho em repuxo,
Melhor que o vinho das missês.
Não se esqueceu o Senhor
A quem nós tudo devemos.
Chóricê de metro eleita
Pr’a cumprir promessa feita
Of’receu o doador
Como vês, porquinho meu,
Teu destino foi mui nobre.
A muita gente abrangeu,
Do rico até ao pobre.
Que sorte a minha, meu Deus!
Matança é já proibida,
Chóricê, só no mercado.
A convivência de outrora
Europa matou. E agora,
Pensa tu noutra comida.
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«Lembrando o que é nosso», por Franklim Costa Braga
Sabes amigo FRANKLIM fiquei com tanta saudade de esse tempo que ainda hoje quando as primas da esposa fazem a matança
Peço sempre para me darem uma malga de maça de morcela, e lá na terra admiram-se porque não é costume fazerem isso, eu explico
então os nossos costumes…. Um abraço FRANKLIM…