:: :: FERNANDO CAPELO :: :: No primeiro episódio o António Emídio «apresentou-nos» a família do Luís do Sabugal que se preparava para ingressar no Outeiro de São Miguel. O irmão António tinha ido de abalada para França na senda de muitos outros sabugalenses nos anos 60. Agora é tempo de ler Fernando Capelo e «ingressarmos» no Outeiro de São Miguel. (Episódio 2.)

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HISTÓRIAS DA MEMÓRIA RAIANA
Episódio 2
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O LUÍS E O PAPELINHO
Incumbido pelo director de acompanhar o novo aluno, aproximei-me do Luís e li-lhe nos olhos a mesma timidez que eu também havia saboreado em Outubro do ano transato.
No ano anterior, o mês das castanhas tinha acabado de chegar. A manhã abria-se em frouxas e frescas claridades, promotoras de tons em castanho. Seria esse, o último alvor da minha meninice, nas Cheiras. No dia seguinte, no dia sete, completei dez anos e estreei-me, como aluno e como adolescente, no Outeiro.
Do traço da porta, pelas escadas, os meus pais desceram a mala que transportava o meu enxoval. Um automóvel, a duas cores, verde por cima e preto por baixo, esperava ao portão. O Vicente, seu condutor, especava-se à beira da bagageira escancarada.
A viagem foi lesta e, dela, perdi todas as recordações. Lembro-me apenas do momento em que, tal como o Luís, cheguei à portaria do colégio.
Entrei com meu pai na secretaria. A irmã Salvina, alta e forte, de óculos grossos, escudada atrás do balcão, cumprimentou-nos, aos dois, com suficiente simpatia. Mexericava nuns papéis. Tratava de matrículas , enfim, cumpria formalidades. Retirou, então, da papelada, um horário cor de laranja. O rosto do impresso continha a cara caricaturada de um garoto de boina, nariz comprido, olhos largos e orelhas abauladas. Ao cimo da folha sobressaía a letras gordas – O Papelinho.
A irmã Salvina olhou-me sobre os óculos e entregou-me o papel:
– Toma rapaz. Passa o teu horário para aqui. Vê lá se te orientas.
Meu pai, absorvido noutras preocupações, asseverou:
– Não quero que lhe falte nada. A irmã fará o favor de controlar os gastos.
Virou-se para mim e indagou:
– A carteirinha verde que te dei?
Revolvi os bolsos antes de confirmar:
– Tenho-a aqui.
– Toma lá estes vinte escudos e guarda-os. Não os gastes mal gastos. Quando vier quero saber do troco.
Depois abraçou-me e despediu-se:
– Volto prá semana. Porta-te bem.
A separação soube-me a final de etapa e quase me engasguei num soluço. Fiquei sozinho e, na tentativa de virar costas ao passado, fui-me embrenhando no preenchimento do horário.
De repente passou, a correr, um galfarro com aparência de mais velho. Surripiou -me a boina e gritou-me ao ouvido:
– Ó Papelinho presta cá o boné.
A surpresa abafou-me a reação e apenas vi o fugitivo sumir-se ao fundo do corredor. Passados dois dias, encontrei a boina pendurada num cabide e soube que o autor do delito era alcunhado de «Côto», talvez por lhe faltar uma mão. A energia não lhe cabia no tamanho e parecia cursado em asneiras. Como consequência do aludido episódio, alguns colegas, passaram a chamar-me «Papelinho» ou, quiçá, por analogia com Capelinho.
Perante o Luís, num breve instante, todo este filme rodou na minha memória. Depois, como que acordado de um sonho, voltei a mim para cumprir o ditame do padre Geada.
Ora, a quase tragédia do meu primeiro dia fez-me optar pela cortesia no trato com o novo companheiro. Dei-lhe uma leve palmada nas costas e convidei-o a entrar na secretaria. Tentando familiarizar o ambiente adiantei-lhe:
– Com que então és do Sabugal! Olha que eu tenho lá muitos amigos. O Nabais, o Correia, o Orácio «sem H», o Anacleto e outros mais. Conheces algum?
– Conheço-os a todos.
– Ora vês? Então podes estar à vontade porque os amigos dos meus amigos, meus amigos são. Pregunta lá à irmã Salvina como deves proceder.
Em escassos minutos o Luís deu conta de vários recados e saiu. Lancei-lhe, então, nova proposta:
– Anda daí conhecer isto por dentro.
– Cá em baixo é o refeitório mesmo ao ladinho da capela. Aqui pelo corredor, que até serve para fazer ginástica, chega-se a todo o lado – salas de aula, sala de estudo, saída para o recreio e subida para o dormitório que é no primeiro piso. Ajudo-te a levar os sacos da roupa e vamos pô-los lá em cima?
Num pronto subimos a curvosa escada de madeira. Descarregámos, apressadamente, a roupa no gavetão de um armário e regressámos ao rés do chão para entrar no recreio onde meia dúzia de garotos perseguiam uma bola de cautchú velho. O campo de futebol, fora da escola, era demasiado afastado e desproporcionadamente grande para improvisadas disputas entre equipas incompletas. Assim, a bem da integração, o jogo seguiu no pátio e só foi interrompido para o almoço. A tarde foi uma mera repetição da manhã até que chegou a hora do jantar. À mesa e após a refeição, fervilharam conversas até que, por volta das dez, a noite já sugeria descanso visto que o dia seguinte seria dia de escola.
Terminou assim o primeiro dia do Luís no Outeiro. Envolvido em conversas e brincadeiras diluiu as saudades dos pais e da terra e, durante toda a noite, dormiu que nem um justo.
Por mim, também me senti satisfeito. Consegui mais um amigo do grupo do Sabugal.
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Agora compete ao amigo José Carlos Mendes pegar na ponta da meada e continuar como entender…
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«Histórias da Memória Raiana», (episódio 2), por Fernando Capelo
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O Capeia Arraiana iniciou no domingo, 13 de Dezembro de 2020, mais um arrojado projecto: «Histórias da Memória Raiana.»
A ideia foi, por mim, lançada ao António Emídio e ao Fernando Capelo no largo com vista para o altaneiro edifício da Escola Regional Dr. José Dinis da Fonseca, mais conhecida por Outeiro de São Miguel e por onde passaram muitos alunos sabugalenses.
Semanalmente a história, ficcionada mas onde os lugares e os nomes até podem ser familiares e verdadeiros, vai avançar com as estórias de personagens próprios e comuns com um novo escriba.
Não sabemos quando vai chegar ao fim mas o principal objectivo é preservar digitalmente a memória colectiva da nossa identidade de povo valoroso e corajoso, os que ficaram e os que migraram, com lindas tradições que alimentam o amor à terra e ao desejo de voltar sempre.
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José Carlos Lages
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