Em tempos de Guerra do Ultramar, concretamente na Guiné-Bissau, já se falava deste beirão, natural do Alcaide (Fundão), aventureiro, um homem de inúmeras actividades, um andarilho da vida. «SOU UM HOMEM GLOBAL!»

Mário Serra Oliveira, mais conhecido por «Mário Tito», sobrenome que herdou do pai, recebeu-me com cordialidade na sua residência, na capital do Festival dos Míscaros, de personalidades históricas ilustres, cumprindo um sonho que há muito alimentava.
Nasceu em maio de 1945… «vim ao mundo para acabar aparentemente com a Guerra Mundial». O pai era cesteiro e a mãe, além das ocupações domésticas, que eram muitas, dedicava-se à agricultura, para fazer face às despesas de um agregado familiar composto com sete irmãos.
Viviam-se tempos difíceis, de muita pobreza… «as primeiras botas que calcei, foi para ir ao Fundão, fazer exame da 4.ª classe, onde passei com “distinção”, mas com o aviso paterno de que não as esmurrasse e as poupasse.»
«Perante as instâncias sociais, políticas e religiosas da minha aldeia o meu pai, que trabalhava das cinco da manhã até às dez da noite, era considerado rico. Assim, não recebia qualquer apoio alimentar, principalmente aquele leite em pó e queijo amarelo, que eram distribuídos a inúmeras famílias por esse Portugal. Sentia-se marginalizado.»
«Era uma aldeia de burguesia, de grandes proprietários, de gente rica… Os baldios pertenciam ao Povo, mas se este fosse caçado a apanhar lenhas para a lareira ou para o forno, era logo reprimido e castigado. As terras eram muralhadas, com medo que os jovens pobres as assaltassem, a fim de colher umas frutas, umas hortaliças. Como andávamos descalços, tínhamos a vida facilitada para subir aos muros, e dar entrada nos terrenos dos senhores burgueses.»
Diz-me que um dos maiores clientes da cestaria do seu pai, foi a Empresa Nova Penteação da Covilhã, porque as lascas de castanho aguentavam as temperaturas das tinturarias. O progenitor esforçou-se para que um dos filhos aprendesse aquela profissão artesanal, mas nem teve esse desejo satisfeito, porque exigia arte, era dura e pouco lucrativa.
O Mário Oliveira ainda foi aconselhado a ir estudar para o Seminário de Beja, convite que não aceitou, porque os seus irmãos também não tinham ido estudar. Andavam na Universidade da Vida.
Além de trabalhos rurais no Alcaide, começou por trabalhar nas obras de construção civil em Valverde, Donas e Alcaide, iniciando um périplo de profissões em diversos territórios por Portugal, África, América e Europa.
Não perdeu muito tempo naquelas atividades laborais, pois surgiu-lhe no Fundão a hipótese de aprender um curso de serralharia e torneiro, na Oficina Adelino Lopes Nogueira. Durante meio ano não recebeu qualquer salário. No fim desse prazo, começou a ganhar sete escudos e cinquenta centavos, dinheiro que mal chegava para pagar as viagens de comboio Alcaide-Fundão-Alcaide. Por vezes, partia e regressava a pé. Em pouco tempo, aprendeu a fazer parafusos e cabeças de pregos… e a limpar a oficina. Mas depressa partiu para Lisboa.
Trabalhou com a irmã, proprietária de uma pequena mercearia no Bairro das Colónias em Lisboa, na Rua de Angola. Com a necessidade do trespasse, foi obrigado a regressar ao Alcaide.
Regressou às suas origens e viu a maioria das pessoas nos caminhos da emigração, sem encontrar horizontes de um futuro melhor.
Foi de novo para Lisboa e iniciou-se no mundo da restauração, na Taberna do Galego, na Estefânia, onde se cansou de aturar as birras da mulher galega, porque «galego» era ele.
Seguiu para a Adega Cabeça do Touro, na Rua dos Douradores, onde era célebre a ementa: chocos assados com tinta. Com meio dia de folga semanal, mísera recompensa para quem tanto trabalhava, partiu para o Restaurante das Beiras, em Alfama, perto da Rua Terreiro do Trigo. Mas, neste vaivém, regressou à Adega Cabeça do Touro, com melhor salário e mais tempo de descanso.
Com conhecimentos de francês e inglês, foi fazer umas épocas balneares no Algarve, em Monte Gordo, com um vencimento invejável, sem contar com as gorjetas dos camones.
Na época baixa regressou a Lisboa e arranjou colocação num snack-bar, em Alvalade, na Rua António Stromp, cuja clientela era maioritariamente constituída por jogadores de futebol e funcionários da RTP. Graças a esses encontros, foi muitas vezes assistir aos jogos de futebol do Sporting.
Com tantas vicissitudes, foi ao encontro de um amigo residente em Melgaço para o desafiar a fugir para França. Não o conseguiu localizar, desanimado, aborrecido, sozinho, acabou por conseguir trabalho na restauração em Monção, Valencia e Viana do Castelo.

Obrigado ao serviço militar dá início a este ciclo com a inspeção no Fundão, que iria marcar profundamente na vida. Partiu para o Regimento de Infantaria em Leiria, onde fez a recruta. A especialidade será na Força Aérea em Tancos. Com a especialidade de amanuense, trabalha na secção da justiça. O seu sonho, com esta especialidade, era ir para a Guiné. Troca com outro militar, consegue esse objetivo, partindo em rendição individual, a 17 de maio de 1967, à terceira tentativa para conseguir um lugar no avião militar.
Como cabo, foi colocado na Messe de Sargentos no Chão Papel, mas depressa passou ao serviço da Messe de Oficiais da Força Aérea, ao lado do Palácio do Governador, onde aprendeu muito durante quase dois anos de serviço militar. Com a autorização do tenente (chefe da Messe), fazia uns biscates na restauração, indo trabalhar para o Grande Hotel, festas de casamentos, batizados, despedidas de oficiais.
Cumprida a missão militar, optou por ficar em Bissau: «Queria liberdade para me livrar dos incultos, dos caciques e lacaios dos caciques e, finalmente, para me libertar da Metrópole, que nessa altura já não me dizia nada. Eu já tinha uma visão globalista.»
Não chegou a acordo com o Grande Hotel e foi trabalhar para o Sol Mar no centro da cidade de Bissau.

O grande passo da sua vida deu-se em novembro de 1969, quando entrou para a gerência do famoso Restaurante «Pelicano», junto ao Cais.
Em 1972 abriu o Restaurante «O Ninho de Santa Luzia», perto do Quartel General e do Mercado do Carvão, na Estrada de Antula, com diversos petiscos, ninho de camarão, francesinhas e, o prato preferido dos clientes, cabra do mato estofada com couve flor e puré de batata.

«No meu restaurante, muitas vezes, alguns dos organizadores do 25 de abril conviviam num recanto previamente escolhido e, além da tomada das refeições, conferenciavam durante muito tempo. Ali se encontraram, entre outros nomes, Otelo Saraiva de Carvalho, Fabião, António Ramos…»
O Capitão Ramos, um dia, perguntou-me fixando-me: «Quer ficar aqui a trabalhar?» Não hesitei em responder-lhe que sim.»
Sentia-se à vontade porque, «apesar de ter oitenta e seis empregados nativos, sempre lhes paguei mais que a média, nunca os explorei e agi sempre dentro dos princípios da legalidade. Dei de comer a muita gente».
Mais tarde também veio a saber que elementos simpatizantes do PAIGC também frequentaram o seu restaurante. Já era um espaço revolucionário, a caminho da democracia.
Surgiu o 25 de Abril e, em outubro de 1974, fundou a «Tabanca», onde era escolhido pelas entidades políticos da Guiné para as refeições das delegações estrangeiras, que visitavam a Guiné.
«Numa manifestação pós-25 de Abril, na Avenida Principal de Bissau, com tanta confusão, confesso que vi a vida em perigo, e tomei coragem e declamei este poema: «Quero morrer de manhã cedo/Antes que a morte possa vir/Não porque dela tenha medo/Mas por ela me rir.»
Com alterações legislativas e socialização dos fornecimentos dos bens alimentares e de restauração, abandonou esta atividade, e conjuntamente com a esposa foi trabalhar como cozinheiro para a Embaixada dos Estados Unidos em Bissau.
Não demorou o recebimento do convite para cozinheiro chefe de um navio sismográfico, percorrendo a Inglaterra, a Escócia e a Holanda. Não hesitou.

Finda esta odisseia, foi trabalhar para a Embaixada Portuguesa em Washington nos Estados Unidos, terminando a sua longa digressão profissional na Embaixada da Alemanha.
Em outubro de 2012, publicou uma volumosa obra «Palavras de um defunto, antes de o ser», da Chiado Editores, que é um «passeio mental, ao fictício e ao real». Na contracapa desta obra literária, que deve incluir-se nas obras literárias do RISO, pode ler-se:
«Quando perguntei ao defunto… qual era o estado dele… vejam só nem zús nem buz. assim como que não me conhecia! Eu, que até andei ainda a arrastar a asa a duas das três irmãs dele – duas gémeas e uma “corcunda”; o nascimento lá minha a
ldeia, de um rapazote, com um sinal numa das virilhas e olho de vidro tal como a mãe, bem como uma tatuagem num braço, e um perna de pau – tal como o pai; os americanos, a falsa democracia, o roubo do petróleo: ingleses e as nossas descobertas.
Os meus dois casamentos, sem nunca me ter divorciado. A origem da Águia, do Tigre e dos Lagartos; a “Graça do Senhor” e a fatia de pão trigo; eu, o Land Rover, dos americanos e dos chineses em Bissau; os fuzilamentos políticos na Guiné; o batismo do vinho na Messe de Oficiais da FAP, em Bissau; o meu irmão bancário e os pintainhos no forno.
Cheira-me a penas chamuscadas, os mórmons e o poderem ter muitas mulheres, às vezes se pode; a pergunta do alfaiate sobre de que lado usava a minha ferramenta; o eu ter ido ao Céu na minha primeira experiência sexual; a descoberta, por uma médica “pára”, que eu tinha um testículo maior que o outro; o foguete ”mosca-abelha” e os foguetões tripulados; o jogo da “belharda”, o jogo do basebol americano e, muito, muito mais».
O texto foi longo, mas esta personagem multifacetada, este beirão que muitos ex-combatentes conheceram em Bissau, descansa agora como guerreiro vencedor na sua aldeia natal da Beira Baixa, o Alcaide, no sopé norte da Serra da Gardunha.
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«Aldeia de Joanes», crónica de António Alves Fernandes
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