Refreadas as chuvas, as madrugadas cheiravam a névoa e deixavam-se ilustrar pelo sincelo pendurado das árvores e dos beirais. O frio imperava embora houvesse quem, indiferente ao tempo, perfurasse as manhãs a caminho do ganha-pão.
O anoitecer congelava barulhos e avultava silêncios. O sol, agigantado e vermelhão, deixava-se cair por trás dos montes sem calor nem glória. Sobrevinha, por fim, um tremor escuro eivado pelo balouçar ocasional de furtuitos vultos que sugeriam o retorno de quem, manhã cedo, havia partido.
No longínquo escurecer que, hoje, venho recordar, notou-se um lento arrastar de passos antes de efluir do breu um homem sessentão, alto, de cara rude e magra. A barba desgrenhava-se-lhe no rosto. O chapéu, de aba curta, acentuava dois olhos grandes, embora semicerrados pelo efeito da bebida e do cansaço. O casaco que lhe agasalhava o corpo tinha uma gola de raposa e dois bolsos chapados de onde despontavam um afiador, uma navalha de barba e as orelhas de uma tesoura. A sombra, assim desvendava, correspondia, por inteiro, a uma das personagens que, pela manhã, se havia perdido caminho fora.
Fontes de seu nome e barbeiro de profissão, alguns lhe chamavam «Pipa» tal era a quantidade de vinho que, reiteradamente, acomodava no âmago. Volvia, nesse final de tarde, de uma ronda de quatro aldeias onde, de forma esmerada, havia rapado e barbeado duas boas dúzias de fregueses. Em troca tencionava receber, no final do ano, três ou quatro alqueires de grão centeio. Chegava, agora, bem bebido e mal comido. A fome tinha-a ele afogado em álcool.
À entrada do povoado a primeira porta vomitava uma luz alaranjada que rescendia a quente e denunciava a lareira onde as labaredas da fogueira investiam contra um grosso tronco de carvalho tentando neutralizar o frio da invernia.
A telefonia, enorme, cor de borralho apagado, pousada sobre a mesa sonorizava o ambiente. A patroa da casa deixou, por momentos a panela entregue ao braseiro e veio à porta verificar o que supôs ser alguém a chegar.
– Ai, homem Deus. É que me pregaste um susto. Então plantas-te aqui no escuro e ao frio? Parecias um fantasma!
O Fontes, alucinado de vinho e inebriado de música, assustou-se com a comparação e apenas conseguiu articular:
– As noites de inverno querem-se frias.
Crendo-se tacitamente autorizado entrou e dobrou-se em frente, até à altura da mesa, aproximando o nariz da telefonia. Observou-a e, tal como se acreditasse que poderia haver gente dentro dela, acabou a murmurar de si para si:
– Mas não se vê ninguém. Onde diabo estarão os cantadores? Ele há cada mistério!
:: ::
«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
(Cronista no Capeia Arraiana desde Maio de 2011)
:: ::
Leave a Reply