Joaquim Lopes Pinto nasceu em Santo Estêvão, Sabugal, uma freguesia situada em terrenos acidentais, que forma pequenos vales na encosta da Serra do Mosteiro. Tem recordações tristes da meninice, quando via chegar à sua aldeia fugitivos da guerra civil espanhola, percorrendo serranias fronteiriças, esfarrapados, calçados com pedaços de pneus, atados com cordéis aos pés, famintos, comendo amoras das silvas.

Os seus pais, condoídos com esta situação social e humana, distribuíam-lhes refeições. Também durante alguns tempos foram acolhidos e apoiados por gentes das populações de Santo Estêvão, Vale da Senhora da Póvoa, Meimoa… Mais tarde regressaram às suas terras de origem. Estas imagens acompanharam-no para sempre.
O pai era natural de Penamacor, a mãe de Santo Estêvão. Deste casal nasceram três filhos, mas apenas um sobreviveu, porque as condições sanitárias naquelas aldeias eram precárias e, neste como em outros aspetos, estavam completamente abandonadas. Sobressaiam neste cenário a autoridade do Estado, através do regedor, na escola o(a) professor(a), nas paróquias o pároco como autoridade espiritual.
Outra recordação, as deslocações à romaria de Nossa Senhora da Póvoa, que motivavam a ida de muitos peregrinos. No cruzamento para o Meimão (Penamacor), no local do Castanheiro das Merendas, recorda as idas e as vindas, oriundas da zona arraiana do concelho do Sabugal, onde se estacionava, descansava e se comiam as merendas.
Os pais, além de se dedicarem à pequena agricultura familiar, também eram feirantes de brinquedos tradicionais, espelhos, quadros e outras miudezas, transportadas numa carroça.
Saiam de Santo Estêvão e faziam os mercados do Sabugal, Alfaiates, Pousafoles do Bispo e Vila do Touro, Bismula e Soito, freguesias do concelho do Sabugal. Também iam a Belmonte, Covilhã e Pega (Guarda), Pínzio (Pinhel) e Miuzela (Almeida), o que os obrigava a caminhar durante duas noites.
Mais tarde o seu filho Joaquim Lopes Pinto e a esposa percorreram estes territórios de mercados e feiras.

Fez o exame da 4.ª classe na Escola Primária do Sabugal, estabelecimento escolar que todos os alunos do concelho eram obrigados a ir fazer exame, prova escrita e oral.
Com uma idade menor depressa iniciou uma longa vida profissional com diversas etapas. Durante dois anos empregou-se numa oficina do Joãozinho Rosa no Casteleiro (Sabugal), a fim de aprender a profissão de mecânico. Diariamente fazia a deslocação numa bicicleta, acompanhado com a respetiva merenda. «Filho de peixe, sabe nadar», a sua vocação era para o comércio e não para as oficinas.
Através de um viajante amigo do progenitor, foi para Póvoa do Concelho (Trancoso) a fim de trabalhar numa taberna e mercearia, propriedade de um capitão do exército. As condições eram péssimas, dormia no chão, passava mal e, além das tarefas comerciais, ainda era obrigado a tarefas agrícolas.
Um dia, há sempre um dia, deslocou-se à estação da C.P. de Vila Franca das Naves e entrou na Loja do Quadrazenho, onde encontrou um dos amigos do seu pai. Contou-lhe a situação de trabalho e logo foi para o Porto, a fim de trabalhar num armazém de roupas e miudezas, na Rua das Flores, com boas condições salariais, com cama, mesa e roupa lavada.
Não demorou a receber um convite para ir trabalhar numa mercearia, junto à Igreja de Nossa Senhora de Matosinhos, onde ganhava mais cinquenta escudos. Com condições laborais mais vantajosas, não hesitou e aceitou. Durante um ano distribuía mercearias porta-a-porta. O trabalho era duro, a vida não era fácil.
O «nosso andarilho» não pára, e partiu para um armazém em Nogueira de Cinfães, ganhava mais cem escudos e ali permaneceu três anos.
Os donos de uma confecção em Alvarenga aumentaram-lhe cinquenta escudos mensais, e não hesitou na mudança. Diz-me: «Pela primeira vez saboreei lampreia.»
Há anos que não visitava os seus familiares em Santo Estêvão, porque as economias eram escassas. Porém, fez a viagem à sua terra natal, onde se enamorou por uma jovem. Foi de novo a Alvarenga, mas o coração falou mais alto e voltou para a sua amada.
Iniciou novo ciclo de vida, acompanhou os pais nas feiras e mercados das redondezas e dos concelhos do Fundão, Belmonte e Covilhã. Nesta cidade, na célebre Feira de Santiago, apaixonou-se por uma jovem feirante, Rosa Faria Dias, com quem, contra a vontade dos pais, viria a casar, matrimónio que já dura há mais de sessenta e cinco anos. Uma Rosa com muitos perfumes e sem grandes espinhos.

Dá rumo à sua nova vida. Foi cumprir o serviço militar para o Quartel de Caçadores 2, sediado na Covilhã. Foi mobilizado para o Estado Português da Índia. Telefonou à mulher para se ir despedir à estação da C.P., no Fundão. À última hora, recebeu a ordem de desmobilização, por se terem certificado de que o seu estado civil era o de casado. Foi deslocado para o Quartel General em Tomar, e deram-lhe o cargo de ordenança do Brigadeiro Abrigues Fino.
Como na década de cinquenta, na região arraiana, havia uma grande procura dos «cornachos», na linguagem popular, uma semente negra lenticão que nascia junto aos grãos do centeio – além de qualidades medicinais, também se extraía uma tinta especial para as camisas – entrou nesse negócio com comerciantes espanhóis e com um grande comprador de Pega (Guarda), com quem obteve grandes lucros.
Também naquelas épocas as senhoras não podiam entrar nas igrejas e no culto sem terem as cabeças cobertas por um véu. Um amigo aconselhou-lhe esse negócio através do contrabando em Espanha.

Entrou na odisseia do contrabando, neste negócio muito lucroso, perigoso, de risco. Fê-lo através da fronteira junto à freguesia dos Foios (Sabugal), deslocando-se à castelhana aldeia de Valverde del Fresno, atravessando a Serra do Picoto. Além dos véus, trazia também cintas e soutiens.
Animado por estas actividades contrabandistas e com a escassez de material para os sapateiros, não hesitou a comprar a «nuestros hermanos» e a vender nas aldeias fronteiriças.
Com a peregrinação por estes caminhos e contactos transfronteiriços, o primo de António Manuel Gonçalves, o célebre «Salsa», taxista nos Foios, convidou-o para o transporte de emigrantes clandestinos, de diversos pontos do país, com destino a França. Inicialmente percorria o Terreiro das Bruxas, a Aldeia do Bispo, o Vale de Espinho e os Foios. Daqui partiam para Naves Frias, onde um capitão reformado os colocava em diversos destinos de Espanha até à chegada a França, principalmente a Paris.
Eram operações muito bem estudadas, com muitos cuidados, com senhas e contra-senhas, num grande sigilo. Mais tarde já os levava a território francês. Diz-me: «Ajudei dezenas e dezenas de homens e mulheres a encontrar um futuro melhor em França.»

Apesar destas atividades clandestinas, onde angariou fundos que lhe permitiram uma vida económica estável, nunca deixou a de feirante. Este Nosso Homem, durante muitos e muitos anos, percorreu mercados e feiras, com histórias sem fim, com mil dificuldades, ventos, chuvas, intempéries…
Afirma: «Trabalhei imenso, muitos sábados, domingos e feriados, de noite e de dia… ganhei muito dinheiro, mas tive muita sorte na vida, desde os tempos de empregado, contrabandista, passador, feirante. A minha longa vida dava um grande romance, um filme de longa metragem.»
Escolheu para passar os últimos anos um Lar, conjuntamente com a esposa, mas atendendo a tantas exigências, muitas por causa da pandemia, encontra-se a viver no Fundão, com mais liberdade.
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«Aldeia de Joanes», crónica de António Alves Fernandes
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Dezembro de 2012.)
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Algo me diz que conheci esse senhor, primo do Salsa que vivia nos Fóios. Se for o que penso mis tarde radicou-se no Fundão. Era feirante e chegou a montar a sua tenda aos domingos na praça dos Fóios. Há muitos anos que lhe perdi o rasto.
Também fiz lá o exame da 4ª classe; saímos de Aldeia Velha no dia anterior; fomos todos a pé, digamos de burro e cavalo; dormimos num cabanal que existia ao lado da escola, embrulhados em mantas e raichões; tempos de miséria!