Em 16 de Outubro passado, Samuel Paty, um professor de história e geografia, foi barbaramente decapitado com uma arma branca por um jovem refugiado checheno de confissão muçulmana, pouco depois de ter saído da escola onde dava aulas, situada na comuna de Conflans-Sainte-Honorine, região de Paris.
Segundo consta, no passado dia 5 de outubro, o professor Samuel Paty deu uma aula de educação cívica, planeada e pré-anunciada, sobre liberdade de expressão usando como referente o jornal satírico Charlie Hebdo, tendo, no entanto, tido o cuidado de autorizar que os alunos cuja sensibilidade religiosa os impedisse de assistir à aula se retirassem.
Nos dias seguintes, o pai de um aluno dessa escola, agora suspeito de ligações a grupos fundamentalistas islâmicos, publicou nas redes sociais diversos vídeos onde não apenas considerou o professor Samuel Paty como um «bandido» e um «doente», como o acusou falsamente de ter utilizado nessa aula uma caricatura de Maomé nu, e divulgou o nome do professor e a morada da escola. Entretanto, os referidos vídeos tornaram-se virais nas redes sociais, tendo suscitado várias mensagens com discursos de ódio tendo como alvo Samuel Paty. E, dias mais tarde, a tragédia aconteceu.
Este atentado bárbaro gerou um grande movimento de indignação e de protesto em França. Numerosas manifestações populares foram organizadas em memória do professor assassinado, e, no passado dia 21 de Outubro, o país prestou-lhe um merecido tributo, numa emotiva homenagem nacional que teve lugar na Universidade de Sorbonne de Paris, presidida pelo Presidente da República, Emmanuel Macron.
Este ato terrorista acontece numa altura em que se procede ao julgamento dos responsáveis pelo atentado perpetrado, em 2015, na sede do referido jornal Charlie Hebdo, na sequência da publicação de caricaturas do profeta Maomé, o qual se saldou pelo assassinato de uma dezena de jornalistas desse jornal. É a décima decapitação com motivação terrorista islâmica ocorrida na Europa, desde 2015.
Aliás, este caso traz à memória uma situação análoga acontecida em 26 de Julho de 2016, na igreja de Saint Ettienne du Rouvray, também em França, quando o Padre católico Jacques Hamel aí foi barbaramente degolado por dois terroristas ligados ao Estado Islâmico, no momento em que celebrava a missa. Após a sua morte, o Imã local Mohammed Karabila, com quem o Padre Hamel trabalhava desde 2015 num comité inter-religioso, descreveu-o como amigo e alguém que deu a sua vida pelos outros.
Assinale-se igualmente que este é o quinto ataque terrorista islâmico cometido em França desde o início de 2020.
A longa lista dos atentados terroristas perpetrados na Europa, no decurso dos últimos anos, por fundamentalistas islâmicos constitui, infelizmente, um elemento marcante da era que atravessamos, em que os sentimentos da insegurança e da incerteza passaram a fazer parte integrante do quotidiano das pessoas no continente europeu.
Efetivamente, em particular nalguns países (França, Reino Unido, Bélgica, Alemanha), tem vindo a instalar-se na sociedade civil uma percepção mais ou menos subliminar de insegurança que desencadeia na vida dos cidadãos sentimentos de incerteza e a amarga sensação de terem que passar a viver em permanente estado de alerta nos espaços públicos.
Atentado após atentado, vive-se nalguns desses países, um ambiente de guerrilha psicológica promovida por alguns líderes religiosos islâmicos radicais e instigada por grupos fundamentalistas obcecados por um ódio visceral aos chamados «infiéis do califado». Esta guerrilha, sustentada pelo dinheiro dos Estados petrolíferos, é veiculada através da internet e tem vindo a ser executada, nos anos mais recentes, por kamikases e por lobos solitários acorrentados a uma obediência cega às teses do fundamentalismo islâmico, para quem o respeito pela vida humana dos crentes não-islâmicos se encontra banido do respetivo código de valores.
Por sua vez, obnubilados por históricos complexos de culpa ou manietados pelo sentimento da sua própria impotência, os dirigentes de alguns desses Estados europeus limitaram-se, durante décadas a fio, a empurrar com a barriga a resolução dos problemas da integração dos imigrantes nas sociedades de acolhimento. Descuraram, de forma irresponsável, a busca de soluções, de médio e longo prazo, adequadas a uma nova sociedade emergente, onde o multiculturalismo foi progressivamente ganhando raízes e está a transformar-se numa realidade incontornável.
Convenceram-se de que, através de uma aceitação meramente passiva nos países de acolhimento, os imigrantes se haveriam de converter, por milagre, em cidadãos respeitadores dos valores civilizacionais da Europa. Permitiram que neles se formassem «tribos» hostis à coexistência pacífica entre diferentes culturas, crenças e civilizações. Deixaram que se criassem guetos revivalistas que erguem barreiras defensivas em torno de «enclaves identitários» construídos com a argamassa da imposição dogmática das suas culturas ancestrais. Toleraram a formação de «sociedades paralelas», onde se fomenta o ódio e a guerra contra os países que as acolhem. Consentiram que se constituíssem no interior dos Estados de direito verdadeiras zonas de excepção, onde o primado da lei é letra morta. Permitiram, em suma, a existência de «territórios perdidos», sem controlo, onde se formam, se organizam e se movimentam livremente os sequazes e os executantes do jihad que, em vagas sucessivas, têm espalhado o terror no continente.
O atentado terrorista acima descrito não pode deixar de nos interpelar e obriga-nos a refletir sobre o seu significado e o seu contexto, bem como sobre a forma como devemos reagir a eventos desta natureza que, desafortunadamente, já fazem parte do nosso quotidiano.
Nesta perspetiva, vale a pena lembrar a referência relativa a este tema feita pelo Papa Francisco na sua recente Encíclica «Todos Irmãos», ao recordar o apelo à paz, à justiça e à fraternidade que ele fez em conjunto com o grande Imã do Islão Ahmad Al-Tayyeb, no final de um encontro inter-religioso realizado o ano passado, em Abu Dabi, no qual ambos declararam:
«As religiões nunca incitam à guerra e não solicitam sentimentos de ódio, hostilidade, extremismo, nem convidam à violência ou ao derramamento de sangue. Estas calamidades são fruto de um desvio dos ensinamentos religiosos, do uso político das religiões e também das interpretações de grupos de homens de religião que abusaram – nalgumas fases da história – da influência do sentimento religioso sobre os corações dos homens (…). Mas, Deus, não precisa de ser defendido por ninguém e não quer que o Seu nome seja usado para aterrorizar as pessoas.»
Infelizmente, este apelo conjunto dos dois líderes religiosos não foi ouvido pelo autor e pelos instigadores de mais um crime hediondo que atenta contra os valores fundamentais da liberdade, da igualdade, da fraternidade e do respeito pelas diferenças dos credos religiosos.
Por isso mesmo, a melhor forma de honrar a memória de Samuel Paty é que tudo façamos, responsáveis políticos, líderes das diferentes confissões religiosas e cidadãos em geral, para que estes valores fundamentais da Humanidade sejam, em todas as circunstâncias, devidamente promovidos e respeitados.
Bruxelas, 23 de Outubro de 2020
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«Portugal e o Futuro», opinião de Aurélio Crespo
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Julho de 2020.)
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