Os chefes dos governos de Portugal e de Espanha reuniram-se no passado dia 10 de outubro, na cidade da Guarda, para mais uma Cimeira Ibérica onde apresentaram um pacote de medidas designado por Estratégia Comum de Desenvolvimento Transfronteiriço (ECDT), cujo objetivo proclamado é facilitar a vida das populações que vivem nas zonas de fronteira e promover o desenvolvimento das regiões fronteiriças dos dois países.
Na conferência de imprensa desta 31.ª Cimeira Luso-Espanhola que decorreu frente à Sé Catedral da Guarda, o primeiro-ministro português fez questão de enumerar os principais benefícios previstos para os habitantes da raia, a saber, a aplicação do «Estatuto do Trabalhador Fronteiriço», a utilização de um cartão de saúde que permitirá às populações fronteiriças serem tratadas em qualquer dos lados da fronteira, a cooperação dos dois países relativamente ao uso dos serviços da rede 112, e a construção de novas rodovias em quatro pontos da raia e de duas novas pontes destinadas a facilitar as ligações fronteiriças entre Portugal e Espanha.
Segundo António Costa, a construção destas ligações fronteiriças tem por objetivo «romper com o isolamento de muitos territórios do nosso interior relativamente a Espanha», uma vez que «esses territórios se situam no centro do mercado ibérico», o que, a seu ver, permite concluir que os mesmos « se encontram em condições ideais para «responder ao desafio de transformar as regiões fronteiriças em novas centralidades no mercado ibérico, bem como para «aproveitar as sinergias de um mercado com 60 milhões da Península Ibérica». Efetivamente, acentuou o chefe do governo, «a relação dos territórios do interior não tem de ser exercida exclusivamente com o litoral».
Esta ideia-força das «novas centralidades» que o primeiro-ministro português gostaria de ver implantadas, no futuro, nos territórios do nosso interior viria, aliás, a ser repisada, durante a Cimeira, pela Ministra que tutela a pasta da Coesão Territorial, ao afirmar em declarações à imprensa que o objetivo da ECDT é «pôr o interior do país no centro do mercado ibérico, para dar uma nova centralidade económica e diminuir o abandono destes territórios» (sic).
É certo que as sucessivas cimeiras que, ao longo de quatro décadas, têm sido levadas a efeito pelos governos de Portugal e de Espanha constituem, indiscutivelmente, uma prova do espírito de amizade que tem pautado as relações exemplares que existem entre os dois Estados ibéricos. E isso não é coisa pouca, numa era marcada por múltiplos diferendos e conflitos armados em diversas regiões do mundo, bem como pelo ressurgimento de um clima de guerra fria entre as grandes potências do planeta.
Mas tal não significa que as Cimeiras Luso-Espanholas (a primeira das quais se realizou em 1983) tenham contribuído, até hoje, de forma decisiva, para o desenvolvimento económico e social sustentado, quer das regiões transfronteiriças, quer, em geral, das regiões do interior dos dois países (tanto do chamado «Portugal Profundo» como da «Espanha Vazia», designação usada por nuestros hermanos que se aplica às regiões espanholas desertificadas e despovoadas). De facto, isto não aconteceu. E a prova disto reside no facto indesmentível de que as referidas regiões, para além de se encontrarem despovoadas, se contam entre as mais pobres da Europa. Na verdade, e não obstante a realização quase anual das referidas Cimeiras Ibéricas, as regiões do interland ibérico têm, como toda a gente sabe, continuado a ser votadas, desde os anos oitenta do século XX, a um esquecimento irresponsável e a um ostracismo atroz por parte dos dois governos ibéricos.
Posto isto, e voltando à Cimeira da Guarda, cabe agora perguntar até que ponto as medidas nela adotadas consubstanciam, ou não, uma resposta adequada, estruturada, consistente, às necessidades prementes do desenvolvimento económico e social dos territórios em causa. E, por maioria de razão, caberá questionar se há, ou não, motivos fundados para acreditar que as medidas agora tomadas na Cimeira estão à altura de contribuir para dar, a curto, médio ou longo prazo, uma resposta cabal ao desafio evocado pelo primeiro-ministro António Costa «de transformar as regiões fronteiriças em novas centralidades no mercado ibérico», e de «aproveitar as sinergias de um mercado com 60 milhões da Península Ibérica».
Ora, quer-nos parecer que, para além do «Estatuto do Trabalhador Transfronteiriço» (cujo quadro jurídico se encontra já regulamentado pela legislação europeia e é diretamente aplicável aos dois países), não serão certamente o cartão de saúde atrás referido e a cooperação na utilização dos serviços da rede 112, nem tão pouco a construção de quatro novas rodovias e de duas novas pontes entre Portugal e Espanha que nos habilitarão a concluir pela existência efetiva de uma «Estratégia Comum de Desenvolvimento Fronteiriço», suficientemente abrangente, estrurada e consistente.
É sabido que a construção das novas pontes e das novas rodovias é uma medida clássica à qual recorrem constantemente os governos com vista a garantir o acesso aos fundos europeus. Aliás, isto mesmo foi confirmado durante a Cimeira por António Costa, ao declarar que as obras públicas em causa visam tirar partido dos dinheiros do próximo Orçamento de Longo Prazo da União Europeia (Quadro Financeiro Plurianual de 2021-2027). Dito isto, é inegável que a medida em causa representa uma vantagem para ambos os países na exata medida em que irá contribuir para melhorar algumas das suas ligações fronteiriças.
Contudo, parece óbvio que as referidas obras públicas não podem de modo algum esgotar o âmbito obviamente bem mais exigente de uma «Estratégia Comum de Desenvolvimento Fronteiriço» digna desse nome. A prová-lo, está o facto indiscutível de que as múltiplas estradas e auto-estradas que foram construídas no passado recente, de norte ao sul de Portugal, não operaram – muito longe disso- o milagre do desenvolvimento económico e social sustentado das regiões do nosso interior. E o mesmo aconteceu em Espanha.
E, no entanto, tudo poderia e deveria ter sido diferente. Mas, para tanto, teria sido necessário que os governantes não se tivessem contentado com tomar medidas meramente pontuais motivadas pelo aproveitamento rápido dos fundos comunitários, mas que, pelo contrário, tivessem adotado, com coragem política, as soluções de verdadeiro alcance estratégico capazes de assegurar a coesão territorial dos respetivos países, que tanto anunciam nos seus discursos, mas que sistematicamente se têm recusado a converter em realidade.
Teria sido indispensável executar medidas com forte impacto na vida das populações em causa, quer através de incentivos fiscais que promovessem o emprego, encorajassem a fixação dos quadros técnicos e das empresas nas regiões do interior, quer através da adoção de outros instrumentos politicos de desenvolvimento, nas áreas económica, social e cultural, da educação e da saúde, do digital, das infra-estruturas, dos serviços públicos, da agricultura e das florestas, dos transportes e da conservação da natureza, que permitissem assegurar, não apenas uma vida digna e estável às populações na terra que as viu nascer, mas também o indispensável repovoamento dessas regiões que vêm sendo votadas ao abandono. Infelizmente, não foi isto que aconteceu. E foi por esta razão, e só por ela, que se operou e continua a operar-se o despovoamento e a desertificação dos territórios do interior de ambos os países.
No que diz respeito a Portugal, os números falam por si. Depois de 1960, o interior perdeu um milhão de habitantes e a sua densidade populacional revela bem o drama atual da desertificação: 0.28 habitantes por km2. Em contrapartida, numa faixa de 50 quilómetros marcada a partir do oceano já vivem hoje 70% dos portugueses. E as áreas metropolitanas do Porto e de Lisboa agrupam já quase metade da população do País. Por sua vez, o litoral passou a ser o lugar onde vivem mais de 82% dos portugueses com menos de 25 anos…
Desgraçadamente, a história dos últimos quarenta anos mostra à saciedade que passámos a viver num território onde coexistem, por assim dizer, «dois países», cada vez mais de costas viradas. De um lado, o litoral, país de primeira, onde se concentram os empregos e os votos que decidem as eleições. Do outro, o interior, país de segunda, cada vez mais despovoado, entregue a gente envelhecida, um país sem voz e sem futuro, varrido do mapa social pela classe política que se tem limitado a contabilizar o seu reduzido peso eleitoral na condução geral do nosso destino coletivo.
Ora, não se pode ousar falar seriamente de respeito pelos princípios fundamentais da Constituição Portuguesa que estabelecem como tarefas e incumbências fundamentais do Estado «a promoção do desenvolvimento harmonioso» (artigo 9.°) e «a coesão económica e social de todo o território nacional» (artigo 81.°) face a tão gritantes desigualdades como aquelas que atrás citamos.
Manifestamente, o indeclinável objetivo da coesão económica e social do território nacional é uma promessa bem antiga dos governantes que se têm alternado no poder, mas que não tem passado disso mesmo. De uma promessa não honrada.
Por isso, o País continua a assistir impotente à lenta agonia do mundo rural. E a progressiva destruição das florestas causada pelo flagelo recorrente dos incêndios parece anunciar a sentença capital da desertificação, a prazo, das regiões do interior. As enormes tragédias humanas e materiais ocorridas no verão de 2017 não se apagarão facilmente da nossa memória coletiva e atestam bem o irresponsável esquecimento a que o interior de Portugal tem sido votado pelos decisores políticos.
É caso para dizer que, em política, como noutros domínios da vida das pessoas e dos povos, não basta formular votos piedosos, não chega proclamar ambições certamente legítimas e desejáveis ou fazer declarações de boas intenções, das quais, diz a sabedoria popular, está o inferno cheio.
Não basta afirmar, como o fez o chefe do governo português apontando para a estátua de D. Sancho durante a Cimeira da Guarda, que é necessário seguir o exemplo inspirador desse «rei povoador». Não chega. Para repovoar o interior, é preciso muito mais do que meros gestos simbólicos.
O que verdadeiramente importa é ousar transformar as promessas de respeito da coesão económica e social do território em realizações concretas. É preciso fazer acontecer. Em suma, ter a coragem política de passar do reino etéreo e virtual das palavras ao caminho de pedras dos atos.
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«Portugal e o Futuro», opinião de Aurélio Crespo
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Julho de 2020.)
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