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Página Principal  /  Aldeia de Joanes • Aldeia de Joanes • Bismula • Fundão  /  Um vagabundo da vida
25 Outubro 2020

Um vagabundo da vida

Por António Alves Fernandes
António Alves Fernandes
Aldeia de Joanes, Aldeia de Joanes, Bismula, Fundão antónio alves fernandes Deixar Comentário

Quem diariamente empreende o percurso Aldeia de Joanes-Fundão pela Avenida Padre Fernando Antunes Ferreira Ferraz, que faz a ligação rodoviária e pedonal entre a Freguesia e a Sede de Concelho, já se cruzou com um cidadão, de estatura meã, vestido de preto, boné e bolsa a tiracolo. Só não o vê se desviar o olhar, o que acontece às vezes.

A minha vida dava um grande filme, sou um vagabundo da vida
«A minha vida dava um grande filme, sou um vagabundo da vida»

Marcámos encontro num café em Aldeia de Joanes, era uma destas tardes outonais. À entrada, olhares a estranhar a nossa presença. Felizmente não éramos portadores do vírus em «ébolição». Numa extremidade trocámos ideias e palavras. Quando lhe pergunto se é natural de Aldeia de Joanes, a resposta é pronta: «Nasci no Entroncamento, mas os meus pais são de Aldeia de Joanes, Alberto Maria da Costa tavares e Laura Dora Nunes da Costa.»

É filho único de um ferroviário, que na missão de distribuidor de víveres da C.P. percorreu o país.

O meu interlocutor abre o livro, diz que em Aldeia de Joanes não vive, sobrevive, há muitos anos que a realidade da vida é a lei da sobrevivência. «A minha vida dava um grande filme, sou um vagabundo da vida.» Peguei nessa frase e pedi-lhe para fazer o guião da sua vida, onde é o grande protagonista e argumentista.

Não se fez rogado, começou dizendo-me que nasceu no Entroncamento, e ali fez a quarta classe.

«Os meus pais, principalmente a minha mãe, queriam o filho padre. Assim, segui para o Seminário de Santarém, onde estive dois anos, abandonando-o por falta de vocação para as vestes eclesiásticas. Para continuar os estudos, vim para o Fundão, frequentei o Colégio de Santo António. Como andarilho do ensino, segui para o Barreiro, onde o meu pai, por motivos profissionais, tinha fixado residência, e matriculei-me no Curso Comercial, na Escola Secundária Alfredo da Silva. Com este curso, empreguei-me em Lisboa, no Grémio do Arroz, onde ganhava acima da média.

Fui para o serviço militar, com recruta em Castelo Branco, especialidade de minas e armadilhas em Leiria, formação de batalhão em Tomar e embarquei para a Guiné. Quando estou quase a terminar a comissão militar, surge o 25 de Abril. «A guerra na Guiné deixou-me marcas psíquicas irremediáveis.»

Regressado a Portugal, o seu sonho era ser maquinista ferroviário. Durante seis meses frequentou um curso no Barreiro e obteve a carta de condução, que lhe permitiu a condução de todas as máquinas de um comboio, inclusive os Alfa.

Na cabine conduziu carruagens carregadas de operários, que se deslocavam no Barreiro, Pinhal Novo, Setúbal, Sines, Beja, Évora e outras localidades da Cintura Industrial de Setúbal e Alentejo. Nesses tempos não era necessário alugar comboios de duvidosa qualidade aos castelhanos, porque o País tinha as melhoras empresas ferroviárias.

Aconteceu-lhe o falecimento dos seus pais. Com trinta e quatro anos, sem a ajuda de ninguém e com a síndrome pós-traumático da guerra colonial, entrou em depressões, que obrigaram o seu internamento no Telhal e no Júlio de Matos.

Teve de se sujeitar a uma junta médica, que lhe atribuiu uma reforma de miséria por invalidez.

«Já vivi muito bem, mas por muitas razões, sem esquecer as minhas culpas, as minhas asneiras, cheguei a este estado, recebo umas sopas na Santa Casa da Misericórdia do Fundão e não tenho nada.

Estou há dezasseis anos em Aldeia de Joanes na casa dos meus falecidos pais. Viver aqui é viver nos limites da sobrevivência, como já frisei.»

Fiz questão de me deslocar à «sua residência», e o que vi recordou-me os cenários de miséria, promiscuidade, quando acompanhava, na década de setenta, a minha esposa num verdadeiro serviço social na área prisional, percorria as Zonas e Bairros problemáticos de Lisboa (Casal Ventoso, Intendente, Bairro Alto, Musgueira, Bairro da Serafina, Chelas…).

O guião do filme aproxima-se do fim. Se um dia for realizado, não receberá óscares, não irá aos festivais de cinema de Veneza, Berlim ou de São Sebastião. Ficará para sempre em Aldeia de Joanes, nossa terra.

Quando o questiono sobre a sua postura de auto-isolamento e se tem amigos em Aldeia de Joanes, responde-me que «todas as pessoas que olham para o rosto de Cristo, pobre, esfarrapado, necessitado, dorido, excluído e marginalizado, são minhas amigas».

O ex-maquinista, José Alberto Costa Tavares, continua a conduzir a máquina da sua vida em linhas férreas repletas de obstáculos.

Outubro de 2014

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Nota
Este texto foi inserido no meu livro «O Nosso Homem», pág. 331, publicado em Março de 2017.

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Pró-Subscrito
Numa tarde quente de outono, dia 5 de outubro de 2020, deixou de conduzir a máquina da sua vida. O funeral realizou-se para o Cemitério de Aldeia de Joanes, quase incógnito. Nos dedos das duas mãos contavam-se os familiares e amigos presentes. Maldita pandemia…. Maldita vivência traumática…. Maldita exclusão social…

Naquele local, com olhares para a Serra da Estrela e para as árvores de folhagens amarelecidas, decorria a última imagem de um grande filme, que apelidaríamos, «sou um vagabundo da vida», com algumas memórias positivas e negativas.

A nossa vida, a vida de cada um, tem por vezes imponderáveis que algumas vezes não são controláveis, só ultrapassada com a ajuda social, comunitária, humana, recurso a cuidados de saúde, com terapias adequadas, principalmente na saúde mental, porque «a linha que separa a saúde e a doença mental é muito ténue».

Finalmente, em Aldeia de Joanes, encontrou a Paz, uma Paz que desejo para a sua Alma.

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«Aldeia de Joanes», crónica de António Alves Fernandes
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Dezembro de 2012.)

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Origens: Bismula (concelho do Sabugal) :: :: Crónica: «Aldeia de Joanes» :: ::

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