Dia 5 de Setembro de 2020, ficará na minha história como o dia em que pude, de facto ser livre. Foram meses de ansiedade, angústias e frustrações, mas «quem espera sempre alcança» e, esgotando a paciência, consegui ultrapassar os últimos obstáculos para poder circular livremente em Luanda, dentro das restrições impostas pelas autoridades.
Amanhã começa a segunda fase. Vou ter de passar pela Barreira Sanitária a caminho da Lunda Norte, meu Porto de Abrigo nestas paragens. Vai ser mais uma aventura visto que as chuvas já começaram em Angola e, os Jeep, nem sempre vencem, e muito menos convencem, os enlameados destas lindas paisagens subtropicais.
No entanto, sonhei que acordava no dia 5, e deparava-me com o episódio que lhes vou relatar. Infelizmente, dado o panorama mundial, um até até pode ser assim.
Estava só naquela imensidão de cidade. Todos e todas fugiram. O malvado do micróbio não dava tréguas. Só alguns eram imunes. E esses contavam-se pelos dedos.
Há terras que volta e meia vivem a desgraça. Ninguém entende a lógica destas coisas, porque se calhar a lógica só existe na cabeça do Descartes.
Estou na linha de caminho de ferro que ligava Luanda a Malanje. Era o comboio que me acordava a apitar para os incautos saírem da sua frente.
Moro junto aquele cruzamento, no Bairro do Cazende, que vertia vida como uma fonte da montanha. Até os deuses do olimpo andavam lá no meio, a sentir o que era o calor humano. Era um ruído forte mas agradável. Nada como este silêncio onde tudo acabou.
Pego numa pedra e jogo a para o nada. Porque nada é o que há para fazer. A pedrada era uma predileção quando era mais garoto. Às vezes não acertava no colega e batia no carro. Era… «pernas para te quero!»
No entanto pareço ver alguém, muito ao longe. Começo a caminhar linha a fora. Parecia uma criança. Quieta, sentada. Quase que não se mexia. Continuava já em passo acelerado, mas parecia que não havia meio de chegar ao destino.
Reparo que está no meio da linha como se o vento a quisesse levar para o céu. Mas prossigo a minha «viagem» até que grita: «Pára!»
Sim a distância social. Bem longe. Emitia um negro cintilante que contrastava com uma blusa azul forte, dado o impacto do Sol brilhante. Estava de perna cruzada realçando as meias até ao joelho. «Vai-te embora. Deixa-me em paz!»
Paz era o que não faltava. Mas insisti em permanecer de pé. Mas continuava a enxotar-me como uma mosca. Até que lhe vêm as lágrimas. Sentia-se só. Não tinha amigos e familiares já tinham falecido com a maldita doença.
Segurava um caderninho branco onde tirava notas e atirava os sentimentos. Não sabia o que me dizer. Eu, pouco mais velho seria, um adolescente, mas também estava só. Nem irmãos tinha. Porém, conseguia andar por aqui e por ali olhando e sonhando até fazer horas para as refeições.
Mas aquele caderninho abriu-me a cabeça. Efectivamente se eu também escrevesse ajudava-me a passar melhor o tempo.
«Gostas de escrever?» Finalmente um sorriso que me incandeou. Os dentes brancos reluziam a questionar-me se gostava de poesia. «Claro que sim!»
Mentira era um péssimo aluno a língua portuguesa e uma vergonha para os meus pais que são portugueses.
Mas leu-me com toda a sua inocência e graciosidade, concentrada, dando-me uma lição de que era uma aluna bem comportada. A imagem daquela fragilidade retive-a para sempre. Pedi-lhe que escrevesse um poema para mim.
Rindo-se pergunta o meu nome. Mas realço que sou muito mal comportado mas bom observador. Marcamos o dia seguinte naquele lugar e ela me contaria a minha história em versos, não deixando de me observar bem com um olhar meigo.
Nesse dia nem dormi. Os meus pais estavam sempre com medo de eu ser contaminado. Mas eu sabia que eramos dos poucos sortudos de ser imunes.
No dia seguinte ainda de noite saí de casa. Não estava para ouvir a minha mãe a bancar-me o juízo. O sol nasce pelas cinco e meia e eu já estava no sítio. Desta vez foi de comboio expresso!
Esperei. Eram 10 horas e nada. Não apareceu. Veio-me a raiva do mau feitio sem me lembrar que até já poderia estar doente. Mas resolvi esperar. Mesmo menina, não tinha cara de enganar. Aliás provavelmente seria o seu primeiro «leitor».
Vejo então um menino chegar, ficando distante. Trazia uma folha na mão. Sabia o meu nome e atirou-ma. «Ela não pode vir. Pede desculpa. Ficou de castigo porque ontem não arrumou o quarto.»
Olho para o papel e vejo um longo poema.
O nome era «Águia»
Luanda (Cazengue), 5 de Setembro de 2020
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«No trilho das minhas memórias», por António José Alçada
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Junho de 2017)
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Obrigado Poetisa Sango. Fico agradado com a sua opinião. Bem haja.
Obrigado Poetisa. Bem haja por estas palavras
Lindo de se ler, lendo pude viver consigo a mesma aventura.