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Página Principal  /  HIstórias da Marvana • Pedaços de Fronteira • Região Raiana • Rio Côa • Serra da Malcata • Vale de Espinho  /  Histórias da Marvana (6)
23 Agosto 2020

Histórias da Marvana (6)

Por Joaquim Tenreira Martins
HIstórias da Marvana, Pedaços de Fronteira, Região Raiana, Rio Côa, Serra da Malcata, Vale de Espinho joaquim tenreira martins Deixar Comentário

:: :: A ALFAIATARIA DO MEU PAI – ESCRITÓRIO PÚBLICO :: :: Nestes meses de Julho e de Agosto aproveitei a oportunidade para me espraiar pelas minhas terras de origem, em passeio imaginário. Calcorreei montanhas, levei comigo amigos de infância, na falta de festas animadas que empolgam sempre o coração de um raiano beirão. Hoje visitamos a alfaiataria do meu Pai que, no fim dos anos cinquenta, princípio dos anos sessenta, era, à noite, um verdadeiro escritório público, devido ao fenómeno da emigração.

O pai do autor na sua alfaiataria
O pai do autor na sua alfaiataria

De regresso à aldeia, caminhávamos em silêncio e meditávamos nas considerações que tínhamos ouvido ao Bragança, como se nos tivesse pregado um retiro. Ouvíamos as passadas do cavalo que percebia certamente os nossos pensamentos. Ouvíamos o chilrear dos passarinhos, o murmúrio das quedas de água dos açudes da ribeira e íamos admirando as copas dos amieiros que bordejavam o rio Côa para onde os nossos olhares tentavam vislumbrar os peixes e sobretudo as trutas destas águas frias e cristalinas de montanha.

Era já tarde e havia ainda luzes na alfaiataria. Encontrámos a porta entreaberta e duas mulheres vestidas de preto estavam sentadas nos bancos mochos reservados normalmente aos aprendizes. A mulher, que se encontrava em frente do meu pai, ia dizendo frases desconexas sobre os filhos, os pais, sogros e perguntando notícias sobre o marido ausente em França. O meu pai escrevia continuamente sobre a folha branca, empunhando uma esferográfica que colocava entre os dedos médio e indicador, como era seu hábito. Brevemente o meu pai atenderia outra mulher. Seguir-se-iam outras no dia seguinte e colocariam toda a confiança no meu pai para escrever e ler as cartas dos maridos e filhos que se encontravam longe, em França, na Argentina ou no Brasil.

Depois da confecção dos fatos, à noite, era o alinhavar de notícias que davam alento aos ausentes da terra, dos familiares que liam e reliam as cartas escritas pelo punho do meu pai que nunca se limitava aos dizeres ou observações que lhe eram confiadas. Fazia sempre uma descrição do momento em que escrevia e dos últimos acontecimentos ocorridos na aldeia. Ouviriam o toque das trindades, veriam o rebanho do ti Zé Reboço a recolher as cabras que dentro em breve ordenharia para a mulher pôr o leite a coalhar, assim como as duas vacas que tinham terminado os trabalhos do campo. Ficariam a saber que a festa da Senhora de Fátima, do dia quinze de Agosto, tinha sido renhida, com a alvorada às seis da manhã a acordar a povoação e a rebentar os tímpanos dos mais sensíveis. A missa tinha sido abrilhantada pela música de Peroviseu, assim como o baile onde certamente se teriam comprometido alguns pares que brevemente anunciariam o noivado. A ribeira ia quase seca porque ainda não tinha chovido desde o mês de Abril. O moleiro tinha passado com o macho carregado com três sacos de centeio em direcção ao moinho do Rato para aproveitar a água da ribeira que, durante a noite, não servia para regar as batatas ou o milho. As chaminés deixavam de deitar fumo porque a ceia estava pronta e brevemente se passaria à mesa para recuperar forças para o dia seguinte.

Quando o meu pai subiu as escadas para se sentar à mesa da cozinha, tinha um ar radiante. Contava que era com o maior prazer que escrevia as cartas das pessoas que não sabiam nem ler nem escrever, e que pouco lhe interessava seguir o que lhe ditavam, pois quando lhas relia encontravam-se lá não só as notícias da família, mas também outras que achava por bem juntar e ficavam sempre contentes com o que ia escrito.

Como era hábito lá em casa, no fim da refeição e antes de ir para a cama, rezava-se o terço.

– Hoje é o Nelson que nos vai rezar o terço, com os mistérios gozosos! – sugeriu o pai, logo que a minha mãe tirou os pratos da mesa e começou a lavar a louça.

Logo no segundo mistério, o meu pai já estava a cabecear e a minha mãe acompanhava de longe, murmurando uma ou outra ave-maria. Depois do terceiro mistério, o meu pai levanta-se, de repente, como se tivesse acordado de um sonho e anunciou, sem pestanejar:

– Amanhã vou começar a tua batina!

O Nelson olhou para mim e deu-nos um tal ataque de riso que já não conseguimos terminar o terço. Impossível continuar! O riso era imparável!

O meu pai não percebeu o motivo da nossa risada e tivemos de lhe comunicar que o terço já tinha terminado e que o Nelson tinha-nos contado uma anedota, sem que a minha mãe tivesse denunciado a situação.

– Bem, bem, cama, que estais fartos que nem uma bola! – intimou-nos o meu pai, num tom carinhoso.

Com esta ainda nos rimos mais e tivemos de nos levantar e limpar as lágrimas de tanto rir, descendo as escadas para irmos tomar o ar fresco de um bonito céu estrelado do mês de Agosto.

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«Pedaços de Fronteira», opinião de Joaquim Tenreira Martins
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Março de 2013.)

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Joaquim Tenreira Martins

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