:: :: A ALFAIATARIA DO MEU PAI – ESCRITÓRIO PÚBLICO :: :: Nestes meses de Julho e de Agosto aproveitei a oportunidade para me espraiar pelas minhas terras de origem, em passeio imaginário. Calcorreei montanhas, levei comigo amigos de infância, na falta de festas animadas que empolgam sempre o coração de um raiano beirão. Hoje visitamos a alfaiataria do meu Pai que, no fim dos anos cinquenta, princípio dos anos sessenta, era, à noite, um verdadeiro escritório público, devido ao fenómeno da emigração.

De regresso à aldeia, caminhávamos em silêncio e meditávamos nas considerações que tínhamos ouvido ao Bragança, como se nos tivesse pregado um retiro. Ouvíamos as passadas do cavalo que percebia certamente os nossos pensamentos. Ouvíamos o chilrear dos passarinhos, o murmúrio das quedas de água dos açudes da ribeira e íamos admirando as copas dos amieiros que bordejavam o rio Côa para onde os nossos olhares tentavam vislumbrar os peixes e sobretudo as trutas destas águas frias e cristalinas de montanha.
Era já tarde e havia ainda luzes na alfaiataria. Encontrámos a porta entreaberta e duas mulheres vestidas de preto estavam sentadas nos bancos mochos reservados normalmente aos aprendizes. A mulher, que se encontrava em frente do meu pai, ia dizendo frases desconexas sobre os filhos, os pais, sogros e perguntando notícias sobre o marido ausente em França. O meu pai escrevia continuamente sobre a folha branca, empunhando uma esferográfica que colocava entre os dedos médio e indicador, como era seu hábito. Brevemente o meu pai atenderia outra mulher. Seguir-se-iam outras no dia seguinte e colocariam toda a confiança no meu pai para escrever e ler as cartas dos maridos e filhos que se encontravam longe, em França, na Argentina ou no Brasil.
Depois da confecção dos fatos, à noite, era o alinhavar de notícias que davam alento aos ausentes da terra, dos familiares que liam e reliam as cartas escritas pelo punho do meu pai que nunca se limitava aos dizeres ou observações que lhe eram confiadas. Fazia sempre uma descrição do momento em que escrevia e dos últimos acontecimentos ocorridos na aldeia. Ouviriam o toque das trindades, veriam o rebanho do ti Zé Reboço a recolher as cabras que dentro em breve ordenharia para a mulher pôr o leite a coalhar, assim como as duas vacas que tinham terminado os trabalhos do campo. Ficariam a saber que a festa da Senhora de Fátima, do dia quinze de Agosto, tinha sido renhida, com a alvorada às seis da manhã a acordar a povoação e a rebentar os tímpanos dos mais sensíveis. A missa tinha sido abrilhantada pela música de Peroviseu, assim como o baile onde certamente se teriam comprometido alguns pares que brevemente anunciariam o noivado. A ribeira ia quase seca porque ainda não tinha chovido desde o mês de Abril. O moleiro tinha passado com o macho carregado com três sacos de centeio em direcção ao moinho do Rato para aproveitar a água da ribeira que, durante a noite, não servia para regar as batatas ou o milho. As chaminés deixavam de deitar fumo porque a ceia estava pronta e brevemente se passaria à mesa para recuperar forças para o dia seguinte.
Quando o meu pai subiu as escadas para se sentar à mesa da cozinha, tinha um ar radiante. Contava que era com o maior prazer que escrevia as cartas das pessoas que não sabiam nem ler nem escrever, e que pouco lhe interessava seguir o que lhe ditavam, pois quando lhas relia encontravam-se lá não só as notícias da família, mas também outras que achava por bem juntar e ficavam sempre contentes com o que ia escrito.
Como era hábito lá em casa, no fim da refeição e antes de ir para a cama, rezava-se o terço.
– Hoje é o Nelson que nos vai rezar o terço, com os mistérios gozosos! – sugeriu o pai, logo que a minha mãe tirou os pratos da mesa e começou a lavar a louça.
Logo no segundo mistério, o meu pai já estava a cabecear e a minha mãe acompanhava de longe, murmurando uma ou outra ave-maria. Depois do terceiro mistério, o meu pai levanta-se, de repente, como se tivesse acordado de um sonho e anunciou, sem pestanejar:
– Amanhã vou começar a tua batina!
O Nelson olhou para mim e deu-nos um tal ataque de riso que já não conseguimos terminar o terço. Impossível continuar! O riso era imparável!
O meu pai não percebeu o motivo da nossa risada e tivemos de lhe comunicar que o terço já tinha terminado e que o Nelson tinha-nos contado uma anedota, sem que a minha mãe tivesse denunciado a situação.
– Bem, bem, cama, que estais fartos que nem uma bola! – intimou-nos o meu pai, num tom carinhoso.
Com esta ainda nos rimos mais e tivemos de nos levantar e limpar as lágrimas de tanto rir, descendo as escadas para irmos tomar o ar fresco de um bonito céu estrelado do mês de Agosto.
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«Pedaços de Fronteira», opinião de Joaquim Tenreira Martins
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Março de 2013.)
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