:: :: A GAUDÊNCIA DO BAR DON TOMAZ :: :: A atracção turística faz-se também através de lendas e histórias que devem fazer parte do nosso património. Nuno de Montemor percebeu muito bem que a divulgação de um povo faz-se também através da ficção literária. O maravilhoso livro «Maria Mim» foi pretexto para descrever costumes ancestrais, paisagens idílicas, cenas amorosas e, sobretudo, a enraizada actividade de contrabandistas sabugalenses.
O Nelson, o Tó Mané e o Zé Fano continuam a acompanhar-me em passeio e imaginação e continuamos a passear-nos por Valverde del Fresno.
– Temos de ir outra vez à taberna do Don Tomaz para almoçar, porque já tenho a barriga a dar horas! – lembrou o Nelson.
– Tens mas é vontade de ver a filha do Don Tomaz!
– Também não desgostaria, mas temos de ir a algum lado para tomarmos forças para subir a Ladeira. Para cá tudo bem, é sempre a descer, mas para lá quero ver-vos a arfar por aqueles caminhos pedregosos e sempre a subir.
– Eu tinha dito para virem às festas do quinze de Agosto ou ao São Brás, no mês de Fevereiro, mas ainda bem que voltaram antes! – saudou-nos, graciosamente, a filha do Don Tomaz.
– Não queríamos regressar a Portugal sem nos despedirmos de ti e comer algo! – disse-lhe com um acento espanhol.
– Pois porque não? – retorquiu ela também no mesmo tom.
– Eu vou comer callos, que é o prato preferido do meu pai quando aqui vem. – decidi-me eu.
– Então callos para todos! – sugeriu o Nelson.
– E coca-cola, porque ainda nunca provei! – decidiu-se o Zé Fano. Lá em Portugal está proibida. E o fruto proibido é o mais desejado!
– E a cerveja San Miguel, também nunca provaste? – questionou a empregada do bar.
– Nem a Sagres ainda provei!
– Quando começares a beber a San Miguel, nunca mais vais querer outra!
– Então venha uma Coca-Cola e uma San Miguel e assim vou provar tudo. Se ficar bêbado, vocês levam-me às costas. – respondeu o Zé Fano.
– Vais mas é ficar aqui com a… Como te chamas? – insinuei maliciosamente.
– Gaudência! Temos alguns quartos livres. Poderias cá dormir. Mas terias de beber algumas garrafas de cerveja para ficares sem pernas para subir a Ladeira.
– O meu pai vinha-me buscar.
– Será melhor. Se não, ainda te vais perder neste Valverde ou até te vais encandear com alguma moça e ainda acabarias por ficar por aqui! – disse a Gaudência.
Todos nós rimos! Alguns misturavam a coca-cola com cerveja porque não conseguiam beber nem uma nem outra, com grande risada da Gaudência, que nunca tinha visto comer callos com tal mistura.
– Não querem ficar para a festa? Dentro de dois dias começa a capeia?
– Essa nem que me pagassem – respondi-lhe. No ano passado vim aqui com o meu pai e fiquei chocado com a maneira sanguinária com que trataram os touros. No fim de cada capinha ter lidado mais ou menos bem os touros, o bandarilheiro quase não acertava com o coração dos animais. Eram cenas horríveis! Tentava uma vez, tentava duas e muitas mais. Não se podia dizer que fosse um espectáculo de arte taurina. Foi antes uma verdadeira chacina. Depois, para ficarmos ainda mais enjoados, vieram os machos do ti Turibio que arrastaram os touros, retirando-os da arena, já mortos e cheios de sangue.
– Mas isto são as tradições das nossas terras espanholas. Vocês são muito sensíveis a estas cenas e têm ainda de crescer muito. Se não quiserem vir à capeia, venham à festa e não se esqueçam de passar pela Taberna do Don Tomaz porque não há só callos. E já aprendi alguma coisa convosco: «coca-cola com cerveja» que vou colocar na carta de bebidas do restaurante.
– Gaudência, mas nesse caso tens de nos pagar direitos de autor – ripostou o Tó Mané.
– Irei falar com o Don Tomaz para vos dar essa bebida gratuita na próxima vez que vierem cá. E ficarão bem servidos porque acrescentarei no vosso prato un poco más de callos.
Sentíamo-nos alegres com a Gaudência, toda graciosa, faladora e com vontade de conviver connosco. A cerveja com coca-cola, que tínhamos bebido, também já falava por nós e sentíamos as faces rosadas do almoço tardio, à espanhola. Continuámos os gracejos com a Gaudência até à soleira da porta, e tivemos de lhe dizer adeus rapidamente quando chegaram alguns clientes para tomar uns digestivos.
Agora era a Ladeira que estava à nossa espera. Iríamos testar o valor energético dos callos. E a boa lembrança da Gaudência também nos daria ânimo para subir o caminho pedregoso até ao alto do Pissarrão. Depois seria mais fácil. Era só descer até à aldeia.
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«Pedaços de Fronteira», opinião de Joaquim Tenreira Martins
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Novembro de 2012)
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Caro Zé Carlos Lages,
Ainda bem que estamos de acordo, mas também não é necessário estarmos todos de acordo. Tem é de haver liberdade para a criação. Obrigado pelo seu incentivo para continuar com as Histórias Raianas que brotam dos meus passeios imaginários, porque, se não, não há literatura. A raia, a fronteira, foram sempre para mim uma espécie de mito fecundo que me levou a ser curioso para ir ao encontro do outro, do estranho, da terra incógnita, da descoberta. Não é por acaso que este blogue se denomina Capeia Arraiana e o título que reagrupa as minhas crónicas tem o nome de Pedaços de Fronteira. Nós que ali nascemos, para onde quer que estejamos, levamos connosco pedaços de fronteira e na nossa vida não somos mais que pedaços de fronteira, sempre a querer ser mais, sempre a lutar por mais, sempre curiosos para percebermos que entre nós e os outros há sempre uma fronteira que tanto pode ser dinamizadora, fecunda em descobertas, como aniquiladora ou desprezadora, porque o outro não tem importância.
A este propósito, gostaria de remeter para dois sonetos meus publicados no meu último livro, desta vez, de sonetos- A Diáspora é o Meu País, intitulados: Vivia na Fronteira e A Fronteira Está Em Todo o Lado.
Ainda bem que o Zé Carlos Lages refere o Eduardo Lourenço, o autor do Labirinto da Saudade, que muito nos identifica como portugueses. Mas nós, raianos, o que nos identifica é a fronteira, uma espécie de mito fundador que em vez de nos confinar na nostalgia, nos mobiliza para irmos ao encontro, à descoberta dos outros, e não é por acaso que a nossa Raia Beirã gerou tantos emigrantes, porque todos sabíamos que para lá da fronteira, da raia, havia um mundo que nos trataria certamente melhor que nas nossas terras de origem.
Não sabia que o Zé Carlos Lages tinha começado com a literatura inglesa. Parabéns, porque ela é a mais cativante, a que talvez melhor saiba contar as histórias, sem considerações filosóficas ou moralistas, certamente a mais próxima da nossa sensibilidade reptiliana.
Aquele abraço raiano!
Caro Tenreira Martins
Sempre gostei muito de ler livros. Profissionalmente fui responsável pela paginação, impressão e edição de algumas publicações na tipografia de que fui sócio-gerente.
Na minha infância comecei por ler, reler e voltar a ler as histórias das «Aventuras dos Cinco» da escritora inglesa Enid Blayton. Depois descobri os clássicos portugueses onde me deixei «aprisionar» por Eça de Queirós e pelo fabuloso «A Cidade e as Serras». E muito perturbado com o «Fahrenheit 451», de Ray Bradbury, que parece estranhamente actual e sobre o qual fiz um trabalho individual na minha licenciatura em Ciências da Comunicação (Jornalismo). Ou então porque dá muita luta imaginar o «Castelo», de Frank Kafka, que fui «obrigado» a ler por um assistente da professora Isabel Graes na minha frequência do primeiro ano do curso de Direito na Faculdade Clássica de Lisboa.
Pelo meio o romantismo e o idealismo de Richard Bach onde «Fernão Capelo Gaivota nos ensina que não somos apenas o que vemos mas sim algo maior»
Isto tudo para dizer que nunca gostei de ver livros transpostos para o cinema ou televisão. «Matam-me» as caras das personagens, os lugares, os momentos, os cenários. Em 2014 sai irritado do cinema com a interpretação cinematográfica do livro «Os Maias» do realizador João Botelho. As séries «dos cinco» na televisão nunca foram iguais ao meu imaginário. E não posso deixar de referir a minha formação política e patriótica (dizer nacionalista pode ser nos tempos que correm uma ignomínia) que me trouxe a filosofia em «O Labirinto da Saudade» de Eduardo Lourenço.
Assim, ou vejo o filme antes de ler o livro ou então se já li o livro nunca vejo o flime com grandes expectativas ou não vejo mesmo.
Um dia perguntaram-me qual era o livro da minha vida? – O Principezinho! – respondi sem qualquer dúvida. E de seguida o que pensava de Fernando Pessoa? – «Como chocolates pequena, como chocolates, porque não há mais metafísica no mundo do que comer chocolates!», respondi sem pensar.
Parabéns por mais este ensaio literário que preserva a nossa história raiana… mesmo que ficcionada.
Aquele abraço raiano