Anne Frank foi uma jovem que viveu confinada num anexo de uma casa, entre 11 de Julho de 1942 e 4 de Agosto de 1944. O problema era apenas ser judia e vítima da perseguição nazi. No entanto, este confinamento não foi fácil. Tinham de estar em silêncio grande parte do dia, saber relativizar os desentendimentos, lutar contra a fome e saber viver nestas condições até à libertação, que, de facto, ninguém se atrevia a prever.
Estes tempos também têm algo de semelhante. E lamentavelmente até na politica em que a raça é substituída por indicadores estatísticos.
Como se a estatística não fosse como o Natal. Basta que um ser humano o queira!
É impossível viver este tempo sem ler o Diário de Anne Frank. Um livro que mostra como alguém, jovem neste caso, sobreviveu mentalmente num esconderijo durante mais de dois anos. A força da palavra escrita foi um estímulo que ajudou a manter a sua sanidade mental e, por ironia do destino, a ser um dos livros de referência mundial, não só da perseguição a uma minoria, mas até que ponto um ser humano consegue resistir.
Tal como alguns de nós já sentiu, ou começou a sentir, viver confinado dias atrás de dias afecta-nos psicologicamente. E, embora não fujamos a um maldoso que nos quer matar, de facto tanta gente necessita de sair para sobreviver. No caso de Anne, seu pai conseguiu uma pequena logística que os ajudavam a alimentar, mas também o dinheiro foi progressivamente acabando e alguns dos que os ajudavam foram morrendo, ou até presos pelo facto de serem motivos de perseguição.
Embora sejam situações bem distintas, o facto é que o medo prevalece. E muito de nós que estiveram confinados perderam, tal como Anne, privacidade, conforto e alguma paz interior e descrença no amanhã. Ainda se está para ver os efeitos destas contrariedades em muitos de nós. E estatísticas de suicídio não contam, tal como de outras tantas doenças perigosas, como cardiovasculares, também muitas delas associadas à incerteza, ou ansiedade, e falta de exercício, subitamente castrado por tanta parede à volta.
O receio de sair à rua, seja por ser contaminado ou, no caso de Anne, identificada, presa e deportada, foi outro traço comum deste período que parece não ter fim. E tal como em tempos de guerra a contra-informação é rica em nos baralhar mas acima de tudo desesperar: quando será que isto acaba mesmo!
No caso de Anne, a tão desejada libertação foi adiada uns dias depois de sua morte por tifo, no campo de Bergen-Belsen, em princípios de Março. Os aliados bem podiam ter feito um esforço e ter antecipado a data da festa, 12 de Abril de 1945, talvez um mês depois de ela ter perecido.
No nosso caso espreitamos agora a vacina sem sabermos ao certo do que falamos. Será que o tubinho com um líquido e um rótulo seja de facto a vacina, só porque nos dizem que é? Algo tão difícil, parece que surge subitamente nos quatro cantos do mundo, como um produto banal e até acessível. Basta apenas ter dinheiro! Ou tudo isto é como na guerra: Contra-informação?
A ser verdade, nem quero imaginar os doentes que até podem falecer dias antes da dita chegar aos hospitais. Até nisso, parece haver uma crueldade inexplicável quando tanta gente sofre impotente. Parece que a triste sina de Anne, continua nestes dias!
Anne viveu a Segunda Guerra Mundial e quase que sobrevivia, não fossem os aliados se terem atrasado e o tifo ter invadido o campo de Bergen-Belsen.
Nós também vivemos um novo tipo de guerra mundial (?), onde parece valer tudo, e que de uma maneira ou de outra, nos vai matando de incerteza, ansiedade, de fome, onde a vida parece que deixa de ter valor, mas também não podemos renegar, que há uma doença que alguém chama de Covid-19.
Uma coisa é certa. Os tempos que Anne viveu, nós também vivemos e seguramente no futuro nunca acabarão.
A arte é saber sobreviver e ser resiliente para que a sorte nos acompanhe. «Sorte» realço!
Lisboa, 29 de Julho de 2020
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«No trilho das minhas memórias», por António José Alçada
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Junho de 2017)
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Um belo texto de perseverança e esperança de que melhores dias virão