:: :: A RAPARIGA DO BAR DON TOMAZ :: :: Talvez as coisas estejam a mudar no Interior de Portugal, agora fortemente apreciado para fugir às grandes aglomerações. Bendito Covid-19! Mas nada de enchentes, que as pessoas não venham em massa, porque o que é demasiado, não é saudável.
A atracção turística faz-se também através de lendas e histórias que deveriam fazer parte do nosso património. Muitos pensam que as histórias para contar são poucas. Nuno de Montemor percebeu muito bem que a divulgação de um povo faz-se através da ficção literária. O maravilhoso livro Maria Mim foi pretexto para descrever costumes ancestrais, paisagens idílicas, cenas amorosas e, sobretudo, a enraizada actividade de contrabandistas sabugalenses.
Após ter escrito a lenda dos bandoleiros de Valverde del Fresno – Florêncio e Baltassar, a Lenda do Barroco dos namorados, os amigos Nelson, o Tó Mané e o Zé Fano continuam a acompanhar-me em passeio e imaginação àquela aldeia espanhola onde encontramos uma encantadora rapariga empregada no Bar Don Tomaz, também designado por El Pucherero.
Estávamos no alto da Marvana – a Ladeira –, como é designada na nossa aldeia! Aqui é que se nota a verdadeira Raia, a verdadeira fronteira natural, uma espécie de muralha quase intransponível, de tão íngreme que é.
– Tenho vontade de dizer aquilo que o meu pai pronunciava quando por aqui passávamos, na ida para Pesqueiro, no mês de Dezembro, quando íamos apanhar a azeitona e fazer o azeite. Entusiasmava-se ao ver a planície imensa e brotava do seu íntimo, espontaneamente, sempre a mesma frase: «Verdadeiramente ancha es Castilha!» E dizia-o sempre em língua espanhola, certamente porque já estávamos em Espanha ou porque adorava ter nascido espanhol, como nos confessava.
– O meu pai vivia na Tourinha, aqui perto da Marvana – disse o Tó Mané.
– Foi em cinquenta e seis que emigrou para a França, como outros que viviam no Curral Fidalgo. Foram os espanhóis que lhes disseram como haviam de fazer. Claro que não tinham passaporte e foram a salto. Deviam ter sido os primeiros da redondeza a ir para a França. Ainda, às vezes, nos conta o que passaram até lá chegar. Quando começa a dizer as primeiras frases emociona-se, começa a chorar e nunca conseguimos saber como foi a viagem. Devia ter sido horrível!
– O meu pai também vivia numa quinta, no Espigal, onde passa a ribeira da Bazágueda, que é um afluente do Erges. Nunca lá fui porque também ele emigrou para França, talvez no princípio dos anos sessenta – informou o Zé Fano que seguia a conversa com interesse.
– Estou encantado com este passeio! Tiveste uma rica ideia de nos levar a Valverde del Fresno! Dou-te os parabéns! – disse o Nelson, entusiasmado com o que via e ouvia. — Além de termos a ocasião de observar bonitas paisagens, vamos ao estrangeiro que, finalmente, fica pertinho das nossas terras e frequentamos uma aula de geografia e de história da nossa região que nunca aprenderíamos nos livros.
Estávamos quase a chegar a Valverde. Eram dez horas.
– Esta é uma boa hora para irmos tomar o pequeno-almoço à taberna do Don Tomaz. Tem lá sempre uns excelentes churros fritos em aceite puro de oliva! Podem também encomendar um chocolate com leite. É sempre o que eu tomo quando venho a Valverde!
– Sente-se aqui mais calor que na nossa aldeia! – observou o Zé Fano. – Por um lado, estamos muito mais baixos e por outro, a Serra das Mesas e a da Malcata travam o vento do Norte. A vegetação é também diferente. Como poderás ver, aqui não há castanheiros, mas oliveiras, laranjeiras, figueiras, que não encontras na nossa terra.
A rapariga do bar do Don Tomaz ia-nos colocando os churros em cima da mesa e preparava os chocolates com leite. Estava um pouco intrigada e admirada porque esta era uma iguaria que normalmente era pedida por mulheres ou moças à hora do lanche. Os jovens espanhóis bebiam cervejas San Miguel, bocadilhos de presunto ou de chouriça.
Curiosa, mete conversa connosco.
– São portugueses? São estudantes?
Certamente que notou que não tínhamos aspecto de contrabandistas.
– E onde estudam? – perguntou rotineiramente enquanto colocava uma colherada de cacau numa taça de leite.
Cruzámos entre nós os olhares e o Nelson respondeu por todos.
– Somos seminaristas.
– Seminaristas? Então vão ser curas!? – e arregalou os olhos! — Hão-de ser tanto curas como eu hei-de ser freira!
Demos uma valente gargalhada à observação, se calhar, profética!
– Eu também sou estudante, mas não para freira. Estudo leis em Cáceres. Terminei o meu primeiro ano. Gostaria de ser advogada para um dia sair de Valverde e viver numa grande cidade, em Madrid, Barcelona ou talvez Lisboa, quem sabe? Aí teria de aprender a língua portuguesa, mas para mim não seria difícil, com o trato diário que tenho com os portugueses que aqui vêm todos os dias…
– Tão faladora, só poderias ser advogada! – fiz-lhe notar.
– Também poderia ser freira! Seria uma boa profissão! Rezando de manhã até a noite, teria comida, mesa e roupa lavada!
Levantámo-nos para ir dar uma volta por Valverde.
– Venham pelas festas de Agosto ou pelo São Brás. Há muita animação e muitos bailes! Venham que ainda lhes vou tirar a ideia de ser curas!
– Ó Marcelo, tu metes-nos em cada alhada… não te admires se ainda vamos perder a vocação! – observou o Nelson, quando já estávamos fora do bar.
– Meu caro, é necessário conhecer o mundo. Só assim a nossa vocação será acertada.
– Bem, esta noite já vou sonhar com a empregada do café. Como se chama? – quis saber o Nelson.
– Não nos chegou a dizer o nome. É a filha do Don Tomaz.
– Aqui as raparigas são mais abertas! – observou o Zé Fano. – Já viram como elas se vestem, se pintam e conversam com os rapazes? Até nos provocam ao convidar-nos para os bailaricos.
– E nós a pensar que por detrás da Malcata não havia nada que ver! – referiu o Tó Mané. – Temos de dizer aos nossos jovens que é obrigatório vir a Valverde! Vamos organizar outro passeio com eles, até porque há raparigas jeitosas!
– Os nossos pais também conhecem Valverde, mas de outra maneira, – esclareci. – No tempo do contrabando vinham aqui regularmente, sempre de noite, a fugir aos guardas-fiscais e carabineiros. Eram sobretudo as nossas mães que vinham com mais calma a comprar o chamado trigo espanhol, todo branquinho e bem seco, as alpergatas para os filhos, o azeite e, no mês de Dezembro, as laranjas, o torrón de Alicante ou os rebuçados de leite para colocar no sapatinho do Menino Jesus, na época de Natal.
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«Pedaços de Fronteira», opinião de Joaquim Tenreira Martins
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Novembro de 2012)
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Caros senhores
Joaquim Tenreira Martins escreve no Capeia Arraiana desde 2013. Desde já o meu grande bem-haja pela disponibilidade de engrandecer o legado que vai ficando arquivado nestas coisas da blogosfera. E que se mantenha por aqui por muitos e muitos anos.
Os escritos têm variado entre os géneros da «Opinião», da «Investigação Histórica», da «Crónica» e ultimamente com três belíssimos textos de «Ficção Literária».
Sobre o José Carlos Callixto com quem tive o prazer de conversar uma vez na Casa do Concelho do Sabugal – tendo-lhe inclusivamente deixado o convite para dispor do espaço do Capeia Arraiana – sei que é um grande caminheiro e que conhece como ninguém as veredas, os atalhos e os caminhos da Raia sabugalense e de outras regiões de Portugal e do Mundo. Confesso que não acompanho como devia as suas publicações e as suas fotos que considero terem muita qualidade.
Têm em comum a divulgação e o amor por Vale de Espinho. Joaquim Tenreira Martins como filho da terra e o José Carlos Callixto enquanto filho adoptivo.
Do primeiro recordo a qualidade com que destacou as virtudes e as qualidades do segundo numa crónica publicada no Capeia Arraiana… (Aqui.)
Sobre os pormenores desta conversa entre os dois que me desculpem mas já vai longa e apenas quero deixar dois pensamentos:
1 – Na vida e neste caso na literatura temos de saber o que significa «Ficção» e «Realidade»!
2 – Na vida e neste caso na literatura temos de saber o que significa «Realidade» e «Ficção»!
Ou seja, ao contrário do que dizem, as telenovelas não são relatos da vida real.
Cumprimentos raianos,
José Carlos Lages
Caro José Carlos Lages:
Há que saber distinguir realidade e ficção e as telenovelas não são efectivamente relatos da vida real. Mas eu acrescentaria um terceiro ponto: quando se faz referência a obras literárias, há que referi-las de acordo com o que as mesmas dizem. Refiro-me, evidentemente, ao romance “Maria Mim”, confundido na primeira prosa de Tenreira Martins com “A Rosa da Montanha”.
Por outro lado, quando se localiza a ficção (eu não lhe chamaria telenovela) em lugares reais, há que não deturpar a geografia e a toponímia desses lugares, sob pena de ofender a memória de quantos neles labutaram e por eles passaram.
Como logo referi, foram estes dois aspectos que me moveram ao escrever o comentário que escrevi, que o autor e meu amigo Tenreira Martins aceitou com a mesma paixão com que escreveu as suas histórias.
Caro José Carlos Lages:
Conforme já respondi ao autor, ao escrever o meu comentário tive exclusivamente por objectivo precisar:
1) as obras reconhecidas como fontes literárias das histórias e lendas da Marvana;
2) a localização geográfica dos lugares referidos por Joaquim Tenreira Martins na sua «Ficção Literária».
Todos saberemos certamente distinguir «Ficção» e «Realidade» … e por isso sabemos que aqueles lugares não fazem parte de telenovelas! São lugares bem reais, que fizeram parte da vida real e continuam a fazer parte das memórias de quantos labutaram nas bredas da Marvana, da Malcata e das Mesas.
Cumprimentos raianos,
José Carlos Callixto
Caro Zé Carlos Callixto.
Sei que mais que ninguém como tu sabe da geografia da nossa raia beirã e, como professor que foste, a tua análise é cirúrgica, impossível de rebater.
Para tua informação, a lenda do Florêncio e Baltazar publicada no Capeia é a transcrição precisa do que o meu pai me contou quando veio visitar-me à Bélgica, em 1976, gravada em cassete. As outras são registos ficcionais que, por vezes, não andam longe da realidade, independentemente da precisão dos lugares.
Mas tenho pena de não ter caminhado contigo pelas nossas terras raianas, como muitas vezes sonhei. Teria aprendido muito. Mas, na falta deste privilégio, deixa-me percorrer esses nossos lugares com os meus olhos, com a minha sensibilidade. Gosto de encontrar pessoas, descrevê-las, olhar para elas com amor.
Deixa-me caminhar com o Zé Fano, o Tó Mané e o Nelson, em passeio e em imaginação, até Valverde del Fresno, deixa-me falar com a Gaudência no bar do Don Tomaz. Deixa-me falar com ela, olhar para ela com ares de adolescente agrilhoado, mas amante das pessoas e da natureza. Deixa-me continuar a viajar, em passeio e imaginação, por essas nossas queridas terras com o meu amigo Nelson, pois ainda gostaria de encontrar o
Bragança, um sabugalense quadrazenho, adolescente como eu, algo poeta e muito mais maduro. Tencionaria visitar o padre Morago em Navas Frias e em Salamanca.
São férias e, nestas, vai faltar-me a festa anual onde todos os santos são levados pela rua da procissão. E, no fim, quando a Virgem de Fátima iria entrar para a igreja, eu disfarçado na multidão, acenar-lhe-ia com o meu lenço branco, cantando: Ó Fátima, adeus, até para o ano que vem! Vai fazer-me falta a tourada para saborear a valentia da nossa juventude e a caminhada anual pelas nossas serras que tu tão bem conheces.
Continua a estar ao pé de nós para nos ensinares os trilhos, as caminhadas, os horizontes, as nossas terras que tanto te (e nos) encantam.
Gostaria de continuar a considerar-te um místico da paisagem, como escrevi há alguns anos no Capeia Arraiana:
https://capeiaarraiana.pt/2013/04/19/jose-carlos-callixto-um-mistico-da-paisagem/
Caro Joaquim Tenreira Martins, a história do Florêncio e Baltazar, contada por teu pai, terá certamente um fundo de lenda e/ou de tradição oral. Todas ou quase todas as lendas têm o seu fundamento; neste caso não é é baseada na literatura a que te referiste.
Quanto ao resto, a tua prosa é ficcionada e, como tal, derivada da imaginação. A precisão dos lugares a que fiz referência (cirurgicamente, como dizes), tem apenas por objectivo localizar a narrativa em locais que não choquem com a memória dos que andaram nas lides do contrabando e que conhecem os barrocos, as moitas e as bredas muito melhor do que eu, embora referidos há 50, 60 e mais anos atrás. Eu … enquanto as minhas pernas andarem continuarei a desbravar matos, a ir ver o pôr ou o nascer do Sol ou da Lua, a ouvir os sons do silêncio, a ver as lâminas de xisto brilhando ao Sol da Malcata, num misto de realidade e de sonho … no tal misticismo a que te referiste há 7 anos atrás.
Apaixonado pelas terras da Raia e pelas suas gentes, histórias e lendas, não posso deixar de tecer alguns comentários acerca das “Histórias da Marvana” que o nosso amigo Joaquim Tenreira Martins tem estado a publicar no blogue “Capeia Arraiana”. Não quero naturalmente pôr em causa o conteúdo das referidas crónicas, que entendo como ficcionadas, mas parece-me importante salientar algumas imprecisões ligadas à origem e descrição das histórias e lendas citadas, bem como à localização geográfica e à toponímia de alguns locais.
No primeiro artigo (“Histórias da Marvana (1)”), Joaquim Tenreira Martins refere a “Quinta” do Padre e a Quinta do Major como descritos no romance “Maria Mim”, de Nuno de Montemor. Ora, acontece que as lendas da Marvana, as histórias da Moita do Padre, da Quinta do Major e muitas outras são descritas no romance “A Rosa da Montanha”, de António José de Carvalho, e não na “Maria Mim”. Nuno de Montemor (que era Quadrazenho e não Sabugalense) ter-se-á aliás parcialmente baseado n’”A Rosa da Montanha” para ficcionar algumas passagens da “Maria Mim”. Também o Dr. Francisco Maria Manso (sob o pseudónimo de Dr. Framar) relata detalhadamente as lendas da Marvana e da Quinta do Major no “Canto Nono” das suas “Caçadas aos Javalis”.
O pároco de Valverde del Fresno referido naquele primeiro artigo de Tenreira Martins é o Padre Pedro Picado, mas que segundo “A Rosa da Montanha” e as “Caçadas aos Javalis” terá sido assassinado às mãos do bando de Narciso Flores, mais conhecido pelo Montejo, que aterrorizava as populações de ambos os lados da raia, nas primeiras décadas do séx. XIX.
Depois, nas “Histórias da Marvana (2)”, Tenreira Martins conta uma lenda do barroco dos namorados … mas, segundo o Dr. Francisco Manso, o Alto de Los Enamorados recorda os amores proibidos de Fernando e Beatriz, filhos de dois velhos fidalgos rivais. O Padre Picado terá sido assassinado às mãos do bando do Montejo, depois de ter casado em segredo aqueles jovens apaixonados. Foi a falta do bom padre, em Valverde, que fez suspeitar que tivesse caído nas mãos dos quadrilheiros. Os bandidos foram descobertos, escondidos nos matos da encosta sul da Marvana, e, com grande comparência de pessoas das aldeias vizinhas, espanholas e portuguesas, enforcados na praça de Valverde. O local onde foi morto tem ainda hoje o nome a recordar aquele crime; é a “Moita do Padre” (e não “Quinta” do Padre), referida inclusivamente nas cartas do IGeoE (carta M888-237). Afluente da margem esquerda do Bazágueda, a Barroca da Moita do Padre corre da raia para poente, atravessando aquela moita.
N'”A Rosa da Montanha”, o jovem apaixonado assume o nome de Eugénio, que encontra por entre as urzes uma bela rapariga, por quem se apaixona imediatamente. Mas a galfarra diz-lhe ser filha do Montejo e o moço estremece! O destino conduziu-o no entanto a uma outra paixão: Florinda, uma jovem contrabandista quadrazenha. O Alto de Los Enamorados (referenciado na carta 572-4 do CNIG espanhol) recorda portanto os amores de Eugénio e Florinda … “A Rosa da Montanha”.
De notar que o Alto de Los Enamorados situa-se ao cimo da Ladeira Grande, caminho que os valespinheiros seguiam para os vales férteis de Pesqueiro mas não para Valverde. A história de uma jovem que levava um carrego para Valverde e encontrou os guardas-fiscais … não tem assim suporte geográfico.
Também nas “Histórias da Marvana (3)”, Tenreira Martins escreve: “Estávamos no alto da Marvana – a Ladeira”. Ora, o alto da Marvana (40°11’29.5″N 7°00’57.6″W) situa-se 7 km a sudoeste do início da Ladeira (40°14’11.7″N 6°58’04.8″W); “por aqui passávamos, na ida para Pesqueiro”, como diz Tenreira Martins … mas ali não é o alto da Marvana!
Mais à frente diz-se: “O meu pai também vivia numa quinta, no Espigal, onde passa a ribeira da Bazágueda”. Mas … o Bazágueda não passa no Espigal (40°16’50,9049″N 7°0’53,3291″W); o Bazágueda nasce mais de 4 km a sudeste (40°14’52,7258″N 6°59’28,9970″W); no Espigal nasce sim a Ribeira da Meimoa.
E termino como como comecei: não quero pôr em causa o conteúdo das crónicas a que me referi, nem me move qualquer objectivo que não seja a precisão das histórias. Espero que não me levem a mal, principalmente o seu autor. Afinal … ficção é sempre ficção. E eu até apenas sou … filho adoptivo das terras raianas!