Num destes dias de calor intenso fui a Vales do Rio, aldeia situada na Corda do Rio Zêzere, a norte, compreendida entre aquela freguesia e a do Barco, Castelo Branco, encontrar-me com um homem, sacerdote, franzino, inteligente, debilitado fisicamente, quase a completar os cem anos de idade, com mais de setenta anos de Pároco, que me fez recordar a figura de Santo Cura de Ars.
O sacerdote tem um nome nobre, Mário Bizarro da Nave, natural do Teixoso, no concelho da Covilhã, onde nasceu a 2 de dezembro de 1921, filho de pequenos comerciantes daquela localidade, oriundo de uma família numerosa.
Em 1932, por indicações dos seus pais, ingressa no Seminário do Fundão, a funcionar nas antigas instalações do Abrigo de São José, os cenários do romance «Manha Submersa», actualmente Hotel Príncipe da Beira. Era frequentado por cento e vinte alunos.
No segundo ano vai frequentar o inaugurado Seminário Menor do Fundão, construído por terrenos doados por uma família benemérita do Fundão, à Diocese da Guarda, com a finalidade da formação de padres. Hoje sem alunos. Sinais dos tempos… Que futuro para a Igreja, sem alterações na nomeação do presbitério?
Em 3 de Setembro de 1944 é ordenado sacerdote pelo Bispo D. José Alves Mattoso, que foi agraciado pela Gão-Cruz de Instituição Pública, tio-avô do Historiador Jose Mattoso.
Ordenado, durante sete anos desenvolve acção pastoral em Folgosinho, no concelho de Gouveia, nunca esquecendo que na casa onde nasceu Viriato habitava um cego, que nunca faltava à missa diária. Tem a companhia de duas irmãs de sangue, que o ajudam nas tarefas domésticas.
Segue viagem pastoral, sendo nomeado pároco da Freineda, Aldeia de São Sebastião e Castelo Bom, no concelho de Almeida, onde permanece oito anos, conhecendo uma nova realidade social, fronteiriça, laboral e as vidas dos contrabandistas. Tem o apoio de uma tia, que lhe trata da casa paroquial.
No final destes quinze anos, regressa às suas origens na Beira Baixa, e é nomeado Pároco do Peso (Covilhã), Vales do Rio, do concelho da Covilhã, e Pesinho, do Fundão. Aqui percorre um caminho de missão, que ultrapassou os cinquenta anos, e só a precária saúde interrompeu este longo percurso, onde deixou muitos amizades e saudades.
Durante estes longos anos teve sempre o apoio das populações, principalmente da juventude, sobretudo através da Acção Católica. Tinha um grande número de acólitos em que a maioria eram estudantes, alguns no ensino universitário.
Disponibilizou o Centro Paroquial do Peso para a realização de reuniões, de actividades culturais, desportivas e realização de peças de teatro. O poder político da época desconfiava de possíveis acções subversivas e esteve sob vigilância.
Fundou o jornal «Mensagem», um órgão paroquial que levava as notícias principalmente aos ausentes no país ou na diáspora.
Em todas as suas paróquias procurou fazer obras de restauro e conservação dos lugares de culto, sem alterações patrimoniais, embora pudesse ter sido mais audacioso.
Nunca foi uma ilha, procurou ajudar e colaborar com os seus companheiros sacerdotes das aldeias vizinhas, pregações, actividades religiosas, confissões, conferências e a cedência da escrita dos seus sermões.
Procurou ajudar as populações e ficou feliz quando se concretizou a construção da Ponte sobre o Rio Zêzere, a unir a Freguesinha do Peso ao Pesinho, um sonho pelo qual sempre lutou, encurtando vários quilómetros entre aquelas duas povoações, ficando mais próximos os concelhos da Covilhã e do Fundão.
Colaborou na revista «O Rosário», e tem uma grande Colecção de Sermões. Nunca se entusiasmou para os publicar e escrever um Livro de Memórias.
Conhecedor da Zona Raiana, a pedido de muitas famílias, conseguiu clandestinamente colocar em território castelhano, a caminho de França, alguns jovens que se recusavam combater em África.
Esta atitude corajosa (na democracia devia merecer público louvor) levou-o, no antigo regime, a uma condenação de seis meses de prisão na Cadeia Sanatório da Guarda. Estava sempre ocupado em trabalhos administrativos naquele estabelecimento prisional. Foi uma inesperada e inesquecível experiência, observou a parte negra do Estado…
Durante estes meses nunca lhe faltou o apoio de excursões de paroquianos e da visita do Bispo. Quanto aos seus colegas sacerdotes, envergonhavam-se de o visitar. Ao nosso Homem, que durante quase três décadas de anos desempenhou funções prisionais, esta atitude não o surpreende. Há tempos faleceu um colaborador de uma Paróquia, com residência a mínimos metros da Igreja Matriz local, e nunca teve uma visita do seu responsável. Apetece dizer que se esqueceram de duas das Obras de Misericórdia, «Visitar os Presos e os Doentes».
No dia da sua libertação tinha à porta da cadeia centenas de paroquianos, que o conduziram com muito entusiasmo, e em ambiente de festa, de regresso às suas paróquias.
Felizmente a Câmara Municipal da Covilhã, em Outubro de 2005, nas comemorações do 135.º Aniversário da Cidade, homenageou-o com a Medalha de Mérito da Cidade. Na mesma cerimónia, e a título póstumo, também foi homenageado um dos melhores assistentes do CNE da Junta Regional da Guarda, o Padre António Sanches, por actividades pastorais desenvolvidas em várias associações do concelho covilhanense.
Questionado sobre a acção dos novos Padres, diz que tem uma ideia muito positiva sobre a maioria, com destaque para a dinâmica de alguns. «Não é por acaso que a Diocese da Guarda, num curto espaço de tempo, tem a nomeação de dois Bispos, um na Diocese de Aveiro e o outro em Viseu.»
Mais novo, não perdia um bom jogo de cartas com amigos e paroquianos, revelando a proximidade com o Povo de Deus, que algumas vezes terminava com um petisco. Ao Padre Mário o vinho tinha de chegar a sua mesa, quente, em banho maria, para nunca ter problemas na garganta.
Olha-se ao redor da habitação arrendada e nota-se alguma austeridade.
No fim de quase oitenta anos ao serviço das comunidades cristãs, é uma ofensa à sua dignidade receber uma magra reforma da segurança social e cento e vinte e cinco euros da Diocese da Guarda. Não tem chorudas reformas porque nunca foi professor, foi sempre um simples pároco, junto das comunidades paroquias.
Há muito que não falava com um HOMEM, sacerdote, tão simples e tão próximo do próximo, um verdadeiro Santo Cura de Ars.
São cada vez mais raros estes grandes agentes sociais, culturais, humanos e religiosos. Estão em vias de extinção párocos das proximidades.
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«Aldeia de Joanes», crónica de António Alves Fernandes
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Março de 2012)
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Conheci muito bem o sr. Padre Mário, pois era habitual vê lo nas celebrações festivas e confissões, no Barco,donde eu sou natural. Era um grande amigo do padre Curto que Deus tem. Estes dois sacerdotes estavam no apogeu das suas vidas no tempo da minha infância: Recordo-os com grande saudade. Obrigado amigo por este seu trabalho.