Para relembrar quem foi o Padre António Vieira, cuja estátua, situada em Lisboa, junto da Igreja de São Roque, onde ele pronunciou alguns dos seus mais brilhantes sermões, foi recentemente vandalizada, escrevamos algumas palavras tanto quanto possível esclarecedoras. António Vieira, foi um dos mais rigorosos artistas da palavra em língua portuguesa, uma figura paradigmática da mentalidade seiscentista, missionário jesuíta, orador que atraía e galvanizava multidões, político e diplomata da Restauração, profeta do Quinto Império e vítima da Inquisição.

O historiador francês Lucien Fèbvre dizia que o anacronismo era o pior pecado do historiador, isto é, não lhe competia julgar e apreciar o passado à luz dos valores do presente. Competia-lhe, isso sim, compreender e dar a compreender os homens e mulheres do passado banhados pela atmosfera mental do seu tempo.
Em 1997, quando passou o 3.º centenário da sua morte, a convite dos professores de História da Escola Secundária Padre António Vieira (o antigo Liceu), fui falar aos alunos acerca da fascinante personalidade do patrono da sua Escola. Comecei por lhes projectar uma imagem com o retrato que os leitores podem ver aqui ao lado e perguntei-lhes se as feições de Vieira não lhes sugeriam as suas origens étnicas. Houve uma jovem do 11.º ano que respondeu que sim: os lábios grossos e os olhos grandes pareciam indicar ascendência negra. E tinha razão: António Vieira nasceu em Lisboa, em 1608, sendo a sua avó paterna negra ou mulata. Tal como viria a acontecer com outro grande português do século seguinte, o marquês de Pombal, também descendente em 5.º grau de uma escrava negra, em nada a origem étnica afectaria a afirmação de Vieira na sociedade portuguesa do seu tempo.
O jovem António Vieira foi levado com sete anos para São Salvador da Baía, no Brasil, onde o pai foi exercer o cargo de secretário do Governo-Geral. Aí viria a frequentar o Colégio dos Jesuítas, ingressando na Companhia de Jesus, como noviço, aos 15 anos, contra a vontade da família. Com menos de 20 anos, foi enviado para o Colégio de Olinda, para reger a cadeira de Retórica. Pouco a pouco, começa a destacar-se como pregador afamado, percorrendo as aldeias da região da Baía. Quando, em 1638, os Holandeses tentaram conquistar a cidade-capital do Brasil, Vieira celebrou a vitória portuguesa com o célebre «Sermão de Santo António aos Peixes», uma das melhores peças de oratória da literatura portuguesa. Pouco tempo depois, em 1641, chegou ao Brasil a notícia de que Portugal se tinha revoltado contra o domínio espanhol. O governador-geral, marquês de Montalvão, aderiu ao movimento da Restauração e enviou a Lisboa o seu filho. O Padre António Vieira veio com ele.
Chegado a Lisboa, não tardaria a ganhar a confiança do novo rei, D. João IV, de quem se tornou amigo pessoal. Conselheiro real, político hábil e diplomata, Vieira transformar-se-ia num verdadeiro «ministro da propaganda» do Portugal Restaurado.
Entretanto, os seus sermões, proferidos a partir do púlpito da Igreja jesuíta de São Roque, atraíam tanta gente que os nobres e burgueses mandavam os criados ao alvorecer para lhes guardarem o lugar.
Junto do poder político, Vieira defendia a ideia de que, para Portugal poder subsistir como país independente, se tornava necessário reestruturar a economia, particularmente o tráfego ultramarino. E avançava uma solução (ousada): para isso, era indispensável atrair os capitais dos grandes financeiros judaicos de origem portuguesa, que viviam no Norte da Europa, dando-lhes a garantia de que os seus capitais não seriam confiscados por motivos religiosos. António Vieira conseguiu o apoio de D. João IV para as suas ideias mas, ao mesmo tempo, desencadeou desconfianças, oposições e mesmo ódios violentos, sobretudo por parte da Inquisição (a «fortaleza do Rossio», como lhe chamava Vieira).
Claro que António Vieira estava dentro da razão, mas estava também fora do seu tempo. A mentalidade inquisitorial, fechada e intolerante, foi inicialmente vencida mas não convencida. Inspirado nos modelos mercantilistas e monopolistas holandeses, Vieira apresentou uma «Proposta feita a El-rei D. João IV em que lhe representava o miserável estado do Reino e a necessidade que tinha de admitir os judeus mercadores que andavam pelas diversas partes da Europa». Como consequência desta acção lúcida e corajosa do Padre António Vieira viria de facto a ser constituída a Companhia Geral do Comércio do Brasil (1649), cujo capital se manteve durante vários anos isento do confisco inquisitorial. Vieira foi, assim, um verdadeiro precursor da política económica pombalina. No entanto, depois da morte de D. João IV, em 1656, a Companhia Geral do Comércio do Brasil terminaria ingloriamente a sua actividade, sob a pressão intransigente do Santo Ofício.
D. João IV confiou ao Padre António Vieira algumas delicadas missões diplomáticas. Em 1646 foi a França, com a proposta de constituição de uma «Liga Formal» entre os dois países, uma aliança efectiva contra a Espanha, nessa altura também inimiga da França (Guerra dos Trinta Anos). No entanto, o cardeal Mazarin, ministro de Luís XIV, acabaria por fazer com Vieira um cínico jogo diplomático, deixando partir o jesuíta-embaixador com um «nim» no bolso. António Vieira aproveitou também esta deslocação para sondar alguns dos capitalistas judaicos que pretendia aliciar para o seu projecto de reanimação do comércio com o Brasil. A viagem terminou com uma passagem pela Holanda, com vista à tentativa de solução do problema da ocupação da região pernambucana pelos Holandeses. Sem resultados.
A segunda viagem diplomática de António Vieira, feita em 1647, foi de novo a Paris, com a proposta de casamento do príncipe herdeiro português, D. Teodósio, com a filha do duque de Orleães, tio do Rei de França. Um novo fracasso. Seguindo de Paris para Haia, Vieira tentou nova solução negocial para a questão de Pernambuco, mas os Holandeses recusaram qualquer tipo de acordo (Pernambuco acabaria por ser reconquistado pelos Portugueses alguns anos depois, pela força das armas).
A sua última missão diplomática seria em 1650: Vieira foi enviado a Roma, com o objectivo de obter a intermediação da Santa Sé na paz com a Espanha. Mas também no Vaticano o jesuíta-diplomata acabaria por se defrontar com as pressões espanholas junto do Papa, regressando a Portugal de mãos a abanar.

Desiludido, parte de novo para o Brasil, em 1651, onde se entregará entusiasticamente à missionação das populações do sertão brasileiro e à luta contra as práticas de escravização e de exploração do trabalho forçado dos índios, levadas a cabo pelos colonos portugueses. Vieira transformou a defesa dos índios numa verdadeira paixão: moveu montanhas para defender a liberdade dos indígenas, pronunciando sermões inflamados, escrevendo cartas ao rei, etc. E, relativamente à condição de vida dos negros cativos, sempre defendeu junto dos seus senhores um tratamento humano e condigno.
Claro que, mais uma vez, a sua acção humanitária e corajosa lhe criou inimigos: por instigação dos grandes proprietários, acabaria por ser preso em 1661 e enviado para o Reino. Também aqui não faltava quem o odiasse: o seu protector, o rei D. João IV, tinha morrido em 1656 e o novo rei, D. Afonso VI, fraco e manipulável, nunca lhe reconheceu qualquer valor. Nem o rei nem o seu valido, o conde de Castelo-Melhor. A Inquisição aproveitou para se vingar e António Vieira foi encarcerado em 1665, acusado de judaísmo. Passaria três anos na prisão, só sendo libertado depois da deposição de D. Afonso VI e da sua substituição pelo irmão, D. Pedro II.
Em 1669, Vieira parte de novo para Roma, onde brilhará como grande orador, o que lhe trouxe a protecção de algumas influentes personalidades, como a rainha Cristina da Suécia, ali exilada. Foi deste modo que António Vieira conseguiu um breve papal que o isentava da jurisdição da Inquisição portuguesa. Regressa a Lisboa mas, sentindo-se rodeado de ódios, invejas e calúnias, parte definitivamente para o Brasil em 1681.
Os últimos anos da sua longa vida passa-os Vieira escrevendo os seus sermões, com base nos apontamentos que foi fazendo. Viria a falecer com quase 90 anos, em Julho de 1697, no Colégio da Baía onde fizera os seus estudos.
Vieira é um dos paradigmas da prosa portuguesa. E é também um exemplo de homem lúcido e corajoso, capaz de lutar com denodo por aquilo em que acreditava.
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«Na Raia da Memória», crónica de Adérito Tavares
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Dezembro de 2009.)
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