D. Manuel Martins, meu querido Bispo de Setúbal, faço-te desta caminhada terrena um apelo: sai do túmulo onde te encontras e vem até nós. É urgente a tua vinda a este País que está a sofrer uma das maiores crises. Foi invadido por uma epidemia, que está longe de se aproximar do fim.

Talvez ninguém compreenda porque tenho este tratamento tão familiar e tão próximo, fruto das muitas conversas pessoais, sobre diversos temas, além das tuas visitas domiciliárias ao meu saudoso pai, um ex-operário, acamado na sua residência, no Bairro da Azeda de Cima, em Setúbal.
Como me tocaram as tuas palavras, os teus gestos solidários e de intervenção. Até a tua confissão pública, «Pecador me confesso», expressa no jornal «A Seara», órgão da Diocese de Setúbal, num tempo quaresmal, foi e é o meu guia para me reconciliar e aproximar de Deus.
D. Manuel Martins, há fome em Portugal. Nos teus tempos de Bispo de Setúbal, afirmavas aos quatro ventos uma mensagem inconfundível, levantavas bem alto a tua voz, tinhas um corpo pequeno, mas uma alma muito grande, alimentada por forte carácter, firmeza, inteligência, simplicidade. Dizias, pois que havia fome em Setúbal e em toda a sua Península, desde o lado sul do Tejo até ao Rio Sado, numa grande faixa de empresas e serviços em falências, muitas fraudulentas, injustiças laborais, com a consequência de muitos funcionários e operariado serem atirados para o desemprego, para o desespero, dor e fome.
Sabias do que afirmavas, porque percorrias e estavas nos espaços da pobreza, da fome, das austeridades familiares e sociais. Não te refugiavas na tua modesta Casa Episcopal, no Bairro da Fonte Nova, junto da residência de muitos pescadores da cidade de Setúbal. Estavas nas periferias das polis.
Com as tuas firmes e sociais intervenções foste apelidado de «Bispo Vermelho» e muitos dos que não saiam dos seus diversos púlpitos revestidos de púrpura, de veludo, de cravos, de benesses, de mordomias, aproveitavam para te injuriar, ofender…

Já Bispo Emérito de Setúbal, quando visitavas a cidade, não eras esquecido, eras saudado, como aconteceu quando os autocarros dos operários da Setenave se deslocaram para o seu posto de trabalho e todos te aplaudiram efusivamente.
A fome que hoje se vive chegou com pezinhos de lã, em surdina, vestida de dor e vergonha. A maioria estava entretida com politíquices, com falsas profecias, e não se deu conta de que ela estava a invadir, a espalhar-se pelas ruas desertas de vida comercial das nossas cidades e zonas urbanas limítrofes, vilas e até chegando a algumas aldeias.
Quase à socapa, de alguns órgãos da comunicação social, de alguns olhares e vivências, chegam-nos imagens e apelos desesperados da Presidente do Banco Alimentar Contra a Fome, da Caritas Portuguesa, de algumas instituições de solidariedade social, paróquias, e de grupos de voluntários: a fome está na sociedade portuguesa, está nas inúmeras filas a aguardar uma sopa, uma refeição diária.
D. Manuel Martins, com um País durante alguns meses em quarentena, em confinamento, empresas fechadas, outras a trabalhar a meio gás, veio o desemprego, a falta de vencimentos, as tropelias financeiras, a corrupção de sempre, e a inevitável chegada da fome, que já abrangia os pobres, os sem abrigos, mas actualmente atinge também classes profissionais, que vão das letras, às artes, à música, aos taxistas, aos futebolistas, às profissões liberais… Estão nestas e noutras profissões os novos e muitos envergonhados pobres.

A tua acção, as tuas intervenções sociais e públicas ficaram órfãs. Em tons muitos ténues, um ou outro teu herdeiro fala, denuncia, mas ninguém no teu patamar, com a tua garra, firmeza, coragem, toma a causa dos pobres, dos humilhados, dos ofendidos, dos injustiçados, dos desempregados, dos esfomeados, denuncia as misérias, as tragédias pessoais e familiares.
É urgente, D. Manuel Martins, levantares-te do sepulcro e regressares à tua Diocese, a todas as dioceses deste País, para bem da solidariedade de muitos milhões de portugueses, e erguer mais uma vez a tua voz, com a mesma coragem e firmeza com que o fizeste como Bispo de Setúbal.
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«Aldeia de Joanes», crónica de António Alves Fernandes
Lindo texto, verídico,sentido, apaixonado e de revolta… adorei….de facto daria grande geito a vinda de D. Manuel Martins Bispo emérito de Setúbal que repousa no eterno acampamento.. bem como faziam falta meia dúzia de Bispos com o mesmo temperamento e a mesma Fé deste Grande Homem… obrigado pelo texto que serviu no mínimo para relembrarmos outros tempos,outras virtudes.