Ao fundo das colinas que vêm da Praça, do Cimo, do Vale e do Fole, forma-se uma superfície plana onde, desde há séculos, corre água, uma com nascente aí, outra escorrendo desde o Robleiro, a que se juntava a proveniente do lameiro do Sr. Zé Jaquim e a do poço do Panto que, no Inverno, vomitava grandes quantidades de água, a ponto de inundar as casas vizinhas, razão pela qual foi entupido com grandes troncos de castanheiros e pedras de cantaria. Toda esta água que chegava à entrada do Vale era entancada para, no pequeno lago que se formava, as mulheres lavarem a roupa…

Por que escolheram Quadrazais para montarem fábricas de sabão?…
Tanta era a água no Inverno que se transformava num ribeiro, a ponto de ter sido dado ao actual Fole o nome de Além do Ribeiro. Esta água corria até à Fonte, onde se juntava à da nascente, e seguia em céu aberto até à Cale Fundeira, donde brotava outra fonte proveniente das hortas do Sr. Nacleto, cujas águas se juntavam, continuando por uma quelhe através de hortinhas, que regava, até ao Lameirão da Ribeira, onde entrava no Côa, ou na Côa (ribeira), como lhe chamavam. Na Cale Fundeira juntava-se-lhe ainda o ribeiro formado pelas águas da chuva provenientes das Eiras por dois caminhos e que seguiam pela actual Rua do Ribeiro.
Da água vinda da Veiguinha e do Robleiro se alimentava a primeira fábrica de sabão pertença do Sr. José Benedito Álvares de Almeida, natural de Pêga, pai do escritor Nuno de Montemor, pseudónimo do Padre Joaquim Augusto Álvares de Almeida, nascido em Quadrazais em 1881, onde os pais se haviam fixado por alguns anos. Essa fábrica ficava na actual Rua da Fábrica, ao lado da casa do João Chanas, em cuja rua na minha infância ainda vi abandonadas as caldeiras da mesma.
Já no Largo da Fonte, a fábrica de sabão do Sr. Nacleto era também alimentada pela água que vinha do Vale e que arrastava os resíduos do sabão. A estas águas juntavam-se na Fonte as águas da chuva que corriam da Praça e das ruas do Cimo. Talvez tenham sido estas águas que alimentaram a fábrica de curtumes em tempos idos, situada nos Pelomes, em conjunto com as águas provenientes do Poço do Padre Pedro, situado na Quelhe do Pateiro. Aliás, como já expliquei em artigo sobre a Toponímia de Quadrazais, o nome Pelomes, ou Pelames, significa curtume de peles. Não esqueçamos que toda a zona da floresta da serra da Malcata para lá do Côa era povoada por ursos, lobos e ainda por veados e javalis, cujas peles eram boa fonte de rendimentos. Daí os topónimos Maússa, ou Má Ursa, Vale da Ussa, ou Vale da Ursa, e Cabeça de Lobos.
Por que escolheram Quadrazais para montarem fábricas de sabão? Era uma actividade rentável, monopólio até 1864 juntamente com o tabaco. Nesta altura, o monopólio pertencia a José Maria Eugénio de Almeida, que contratara 60 quadrazenhos como guardas da Alfândega. Findo o monopólio, surgiram pequenas fábricas por todo o lado, tendo fechado muitas delas pouco tempo depois. Como os quadrazenhos calcorreavam todo o Portugal, eram veículo para o escoamento do sabão, estando, assim, garantida a venda da produção.
Nos fins dos anos 50 e inícios dos anos 60 do século passado, sendo Presidente da Junta de Freguesia o ti Manuel José Saloio, que deu nome à rua que parte da Fonte para São Sebastião, foi canalizada toda esta água, a começar no Vale até à Cale Fundeira.
Pois bem, Quadrazais tinha água suficiente para as suas necessidades. A Fonte onde se abasteciam deveria ter tido um arranjo rústico para poderem encher os cântaros, provavelmente semelhante ao da Fonte D. João, antes de sua água ter sido canalizada. Em 1903 a Câmara Municipal do Sabugal resolveu canalizar a nascente desse lugar, formando uma fonte de três bicas, onde se enchiam os cântaros e se bebia directamente, e que alimentavam um pio, tanque para os animais beberem, e onde se molhava a palha para fazer nagalhos no tempo das malhas, até que este uso foi proibido. Ao lado das bicas fizeram uma espécie de capela aberta, a que não faltava uma cruz por cima, onde se mergulhavam caldeiros e cântaros, sobretudo para uso de limpezas. É a fonte de mergulho, hoje fechada com uma porta de ferro, com nível mais baixo que os canos e a rua.
No rebordo do tecto da capela sentavam-se os rapazes a ver as moças que vinham encher os cântaros, seleccionando aquelas que lhes serviriam para futuras esposas.
À entrada das escadas que descem até ela, ficam dois poiais onde pousavam os cântaros para os ajeitar e colocar na cabeça. Em frente fica o muro que sustém a rua, onde muita gente se senta.
Com a canalização das águas da Fonte D. João para dentro das casas nos anos 70, a água da Fonte deixou de ser usada, continuando a correr e a matar a sede a um ou outro que teima em prová-la, apesar do letreiro: «Água não tratada.»
Na noite de São João, os rapazes enfeitavam-na com craveiros e outras flores roubadas dos poiais das janelas. A Fonte ficava fechada até chegar a camioneta da carreira. Antes desta existir, deveria ser até cerca das nove horas, para que toda a gente a pudesse ver. Só então as donas poderiam ir buscar os vasos.
A Fonte foi, pois, desde os mais remotos tempos, um dos principais elementos da paisagem urbana de Quadrazais, a par da igreja e dos sinos.
Merece, portanto, que lhe dedique um poema.
Nota: Usei os nomes como são pronunciados na aldeia (loije, hõije, balhar, ropa, vienda, munho, Bajé=Maria José, Nacleto, Zé Jaquim) e as palavras «ânsia» e «fuscos» da Gíria quadrazenha, que significam: água e os guardas-fiscais. Usei o topónimo Robleiro porque é este o correcto e não Reboleiro. Robleiro, palavra usada noutras freguesias, como na Lageosa, significa carvalho pequeno. Havia muitos nesse local. Reboleiro provém de rebolo, inexistente aí.

A Fonte de Quadrazais
Água corrente, que corres
Sempre das bicas de bronze,
Mata-me de novo a sede
Como fizeste há tão longe.
Corre, corre que não morres.
Contigo se faz a sopa,
Alimento principal.
Contigo se lava a ropa,
Contigo a vienda se faz.
Entr’ entra no caldeirão.
Cântaros mil tu encheste,
Casas mil também lavaste.
Nagalhos amoleceste.
A cavalos, burros, vacas,
Novo e velho saciaste.
Tu regaste hortas sem fim,
Pequeninas, mas à mão,
Umas couves, batatinhas
Ou comida pr’a galinhas.
Segue teu doce rão, rão.
Vaidosas vinham a ti
Moças com vasos de barro
Em suas cabeças deitados,
Procurando namorado.
Vinham sem pressa. Eu vi.
Molidas bem trabalhadas,
Cada qual a mais bonita.
Nelas cântaros em pé,
Bamboleios de mocitas
Miraram tuas olhadas.
Alimentaste o sabão,
Curtiste para agasalhos.
Moeste grãos para o pão,
Enchendo sempre a levada
Do munho Bajé Pecada.
Muitos bois, cavalos, burros
A ti vinham já cansados
Pedir-te ajuda aos urros
P’ra continuar trabalhos.
Chega, chega, seus danados!
Apagaste muitos fogos
De casas e castanheiros.
Deste água a quem a pedia,
Enchendo-lhes seus caldeiros,
Mui honrada de alegria.
Até ropa tu lavaste
De bebés ou de crescidos,
Fazendo dessa maneira
Que andassem bem vestidos.
Não lhes feches a torneira.
Limpaste o pó das janelas,
Da porcaria os soalhos
Trazida da baixa loije,
Produzida pelos gados.
Faz o mesmo ainda hõije.
Burros pesados de andilhas
Teu caminho procuravam
De água levar em vasilhas,
Pr’a regar umas plantinhas
Que em seus quintais medravam.
Viste balhar no terreiro
Rapazes e raparigas
Sonhando em futuro amor
Que animará suas vidas.
Corre, corre, sem pudor.
Serás, assim, conhecida,
Sendo agora a tua vez,
Pela Fonte dos Amores,
Como a de Pedro e Inês.
Enche, enche a vasilha.
Mas também lavaste as mágoas
Das gentes de Quadrazais.
Tu limpaste-lhes as lágrimas,
Grandes fontes de seus ais.
Continua pelas fráguas.
Viste a entrar na taberna
Muito homem bem direito.
E viste-os horas depois
Sair tortos e sem jeito.
Não o lamentes. Sê terna!
Presenciaste conversas
De ociosos aos Domingos,
Mas também mataste a sede
Aos cansados e doridos.
As dores destes não mede.
Até o contrabandista,
Ofegante de correr
Dos fuscos, a ti procura
Para matar sua sede.
Pára, pára, que loucura!
Nas noites de São João
Vaidosa te sentirias
Com tantos cravos e rosas
Que os rapazes te traziam.
Vai, vai, deixa o cheirosão!
Há muito que te não provo
Esse sabor da infância.
Prometo que hei-de beber
Mais gotas da tua ânsia.
Dá-mas, que já não sou novo.
Estou velho, já fui novo,
Sempre te vi a correr.
Corre, corre pelo povo
Agora e depois de mim,
Que teu correr não tem fim.
Continua o corre-corre
Da eterna melopeia.
Os quadrazenhos renovam,
Tu te manterás alheia.
Continua, que não morres!
>> Lisboa, 2.05.2020
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«Lembrando o que é nosso», por Franklim Costa Braga
Senhor Franklim :
O que aqui vou escrever podia fazê-lo num artigo, mas talvez fique melhor aqui:
Cada vez que passo em Quadrazais junto à Igreja e descendo para a fonte que está a ilustrar o seu artigo, lembro-me dos grandes Homens de cultura quadrazenhos e que estão já a perpetuar a cultura portuguesa. Penso que a melhor homenagem que lhes podia ser feita seria imortalizá-los com uma estátua em bronze, como tem Fernando Pessoa no Chiado e José Saramago na sua terra, estátuas essas que poderiam ficar no Largo da Igreja, junto a essa bonita fonte, ou noutro sitio julgado mais conveniente. Que maravilhosa imagem daria estar Pinharanda Gomes e Nuno de Montemor frente a frente simulando uma conversa ?
Em algumas estradas e povoações do nosso Concelho vemos figuras de touros simbolizando a Capeia da Raia. Também não custava muito simbolizar a cultura…
António Emídio