«A minha ida para França» é uma história de vida contada na primeira pessoa por António Cerdeira Seixas. Nascido em 1924, natural de Vilar Maior, casado, pai de três filhas, pintor de profissão recorda o «salto» para Paris no ano de 1962.

A partir daí não estive um dia sem trabalho na França…
O Zé Pequeno e o Ronda foram dos primeiros a ir para França. Estávamos sempre a ouvir que lá se ganhava muito. Para sairmos daqui foi preciso deixar o dinheiro em depósito, sete contos, que era mais ou menos quanto custava uma junta de vacas.
Saímos no dia 5 de Outubro de 1962.
Comigo, foram da Vila o António Rasteiro, o irmão Zé Rasteiro, o Zé Prata e o António Adrião (já lá tinha estado); do Escabralhado, o Zé Polónia; da Arrifana, o Joaquim Prata e o Joaquim Quelha; da Bismula, o Joaquim Leitão; de Badamalos, o Zé Mergildo.
Saímos da Vila à tarde pela Ponte em direcção ao Vale de Bolos. Fazia bom tempo e só apanhámos água na saída de Espanha.
Dei sete contos ao Joaquim Rasteiro da Arrifana que era o passador. Não lho demos logo. Tínhamos uma fotografia e quando lá chegámos rasgámos a fotografia ao meio para o passador trazer a metade e poder receber o dinheiro.
Eu tinha o dinheiro, 18 contos, que apurei no mês atrás numa obra da senhora D. Marquinhas da Ruvina da casa que pintei ao senhor Pedro. Não fui um ano antes, em 61, porque tinha gasto o dinheiro na compra de uma mota, uma Famel que custou sete contos. Pedi dinheiro à senhora Evangelina mas diz que já tinha emprestado ao ti Zé Badana que lhe deixou o Pereiro como fiança. Não queriam que eu abalasse. Fui falar à senhora Dona Marquinha da Ruvina. Pedi-lhe sete contos e ela disse-me:
– Você não vai! Você fica aqui vai pintar a casa do senhor Pedro.
Queria que eu fosse a trabalhar para o Colégio da Ruvina. Mas ganhos os 18 contos tratei de ir.
Andava a semear de pão o cabeço da vinha da Cabeça Lagar e foi lá a minha São com a filha mais velha da Lipondina que está em França.
– Ó pai, venha embora que os homens já lá estão à espera na vila.
Cheguei a casa agarrei uma côdea, uma merenda, um ou dois chouriços e lá fomos. Antes de sair estava a fazer vinho o Henrique Meliço. Tinha uma dorna ali ao pé da casa da Beatriz Monteiro. Diz-me ele:
– Bebe uma pinga, que tão cedo não o voltas a provar!
Agarrei uma caneca em forma de tigela e bebi-o! Levava sede. Olhe que muita sede passei eu até chegar aos Pirinéus, tanto que eu cheguei a pôr um lenço onde os porcos andavam e a coar aquela enxovia.
Nem cobertor, nem manta, apenas a roupa que tínhamos no corpo e um pau na mão. Juntá-mo-nos no Vale de Bolos e fomos passar ao lado de Nave de Haver e ao lado de Poço Velho, era já lusco fusco.
Só andemos de noite. A primeira noite cheguemos a Salamanca a andar. (Fiz-lhe reparo da impossibilidade de percorrer a pé tal distância talvez, então fossem duas noites.) Chegámos já de dia. Fomos para um hotel e estivemos lá três dias a jogar às cartas, ao montinho com castanhas que apanhámos no caminho. Depois saímos de Salamanca num carro, e lá para diante mudámos para uma camioneta que estava carregada de caixas vazias de cerveja, com duas filas de caixas em toda a volta até ao cimo e nós íamos lá dentro.
Antes de entrar na camioneta estivemos num palheiro onde se encontravam mais vinte homens que já ali estavam há 10 ou 15 dias. Fiz-lhes a barba a todos. Dez tostões cada um. Quando saíram, coitados, lançaram-se às maçarocas do milho, comeram como se fossem porcos, cheios de fome. Aí a nós deram-nos de comer feijoada, numas cortelhas onde havia porcos, no meio dos porcos. Aí deram-nos de comer bem, ainda foi o Joaquim Rasteiro mas depois daí para diante já eram franceses ou espanhóis, passavam de uns para os outros. Não foi sempre o Joaquim Rasteiro. Deixou-nos e entregou-nos a outro.
Fomos até aos Pirinéus. Ainda estou a ver, em Espanha, só comemos uma vez lá no meio dos porcos. Dormimos e comemos lá no meio dos porcos. Mas aí enchemos a barriga. Atravessámos um rio a pé, ficámos todos molhados, a roupa enxugou-se no corpo. Depois entrámos para a camioneta… a monte, tudo à balda. No caminho os carabineiros mandaram parar a camioneta. Íamos na camioneta, em Espanha, veio a Guarda Civil, abriu as portas da camioneta que levava as grades de cerveja, ficámos todos calados, cheínhos de medo a ouvir os guardas falar. Calhou a ser num sítio em que desviaram caixas para espreitar e ter três filas de caixas e não duas. Tiraram uma, tiraram duas… Se tiravam a terceira estávamos desgraçados. Estávamos todos caladinhos a ouvir a conversa dos guardas. Era uma camioneta com 71 homens. Todos muito calados, cheios de medo. O cheiro era insuportável. Uns cagavam aqui, outros mijavam além. Eu tive de subir pelas grades acima e rasgar o forro da camioneta, fazer lá um buraco, não se aguentava o calor.
Lá mais para diante mandaram-nos sair da camioneta e atirar com os paus que levávamos. Havia outros homens para vir mas não vieram. Ficámos sem os paus. Depois dali fomos sempre a pé até chegar lá. Só andávamos de noite, ainda em Espanha. Mais tarde, já em França, voltámos a montar noutras camionetas mas deixaram-nos muito longe. Fomos muito tempo, uma noite a andar, depois fomos de carro até Champigny. Deixaram-nos num lugar onde havia espinheiros.
– Vá, já cá estais!
Demos então a metade da fotografia que levávamos connosco para eles poderem receber o dinheiro em Portugal.
Ficámos ali sem saber para onde ir. Eu virei-me para os da vila:
– Ála, vamos embora! Se formos presos, fomos presos!
Quando, às páginas tantas, andemos para aí uns três ou quatro quilómetros, vimos o Chico Henriques. Ah! Nem que víssemos Deus do Céu. Vimos o Chico Henriques que tinha ido a renovar o «rapicé». Estavam logo ali as Barracas do Ronda, mais à frente as do Zé Pequeno, vimos logo que nos deixaram onde queríamos chegar. Calhámos a encontrar o Chico Henriques. Fomos para casa do Ronda, ofereceu-nos de comer, comemos. O António Rasteiro e o Zé Rasteiro foram para casa do Zé Pequeno e no dia seguinte foi levá-los a Blois.
No dia seguinte logo fiz uma barraca, eu mais o António Adrião naquilo do Ronda. A Conceição fazia-nos de comer. Ao outro dia o ti Zé Júlio da Arrifana veio-me a buscar para o patrão. A partir daí não estive um dia sem trabalho na França. Depois vinha a dormir lá à barraca. Oito dias dormi lá na barraca do Ronda. Depois o patrão logo me arranjou alojamento.
No caminho não tive fome, levava dois chouriços, troquei o chouriço pelo chocolate do Joaquim Leitão que lhe fazia mal aos intestinos. No caminho davam-nos muito chocolate. Só andávamos de noite.
Alguns ficaram em Saint Denis mas, nós os da Vila, combinámos levarem-nos a Champigny.
Quando eu andava a fazer a torre (trata-se da torre da Igreja de Vilar Maior) já o Zé Duarte tinha cá vindo de férias e lembro-me de o Chico Bárbara dizer:
– Pediu-me o dinheiro a mim, já mo pagou e ainda ficou com dinheiro que dava para comprar um bezerro.
A francesa onde trabalhava a minha senhora, arranjou-me ali terreno onde construí barracas que depois eu alugava. Mais tarde acabaram com as barracas. A mim deram-me 200 francos para deixar as barracas e ir para um apartamento. Ganhava 96 francos e pagava 60 de renda. Bastava assinar em como arranjava alojamento, logo lhe passavam o «rapicé» que era o primeiro documento, antes da «carta de séjour». O consulado dava o salva-conduto.
E, assim, foi a minha ida para França.
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«Vilar Maior, Minha Terra, Minha Gente», crónica de Júlio Marques
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Júlio Marques é natural de Vilar Maior. Licenciado em Filosofia com uma pósgraduação em Relações Interculturais, ensina Filosofia e é Director do Centro de Formação Gaia Nascente. Tem publicada uma obra de carácter etnográfico «Memórias de Vilar Maior». Apreciador de vinho e poesia, de preferência maduros. Usa de ternura para olear a vida e de humor q.b. para lhe tirar a insoncice. A sua frase favorita: «Ora Essa!» É responsável pelo blogue «Vilar Maior, Minha Terra, Minha Gente»… (Aqui.)
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