Nada é novo. Tudo já aconteceu em tempos idos. Para não falar das pestes de tempos mais recuados, em que se morria que nem tordos, em grande parte por falta de higiene: não havia água canalizada, não havia esgotos, não existia o hábito de tomar banho e lavar frequentemente as mãos, até porque a água tinha de se ir buscar às fontes e não abundava nas casas ou nos campos onde se trabalhava. Os físicos, médicos da altura, ainda nem sabiam qual a origem da peste e muito menos como curá-la. Sanguessugas e sangrias eram os remédios mais frequentes, mas ineficazes. Faziam-se fogueiras para purificar os ares, pensavam eles, julgando que o vírus andava no ar e podia ser queimado. Cercos sanitários não ocorreram mas havia muita gente que procurava melhores ares fora dos meios urbanos.

O medo instalou-se…
No segundo quartel do século XIX surge a cólera. Aparece em Portugal em 1833, trazida de fora pelos liberais que vieram ao serviço de D. Pedro IV. Neste ano a cólera fez 13.523 mortos, o que se teria de multiplicar por três ou quatro para se poder estabelecer uma comparação com os dias de hoje, tendo em consideração o volume da população dessa época. É então que, sem conhecerem a origem nem os meios de a combater, surgem os cordões sanitários militares. A cólera poderia vir de Espanha e, por isso, havia que fechar a fronteira. Foi isso que lembrou ao nosso D. Pedro IV, que impôs um bloqueio em toda a fronteira de Riba Côa e que tanto prejudicou a região. É este o cenário em que decorre o romance «Maria Mim», do meu conterrâneo Nuno de Montemor. O cordão militar raiano de Riba Côa servia para impedir que a «quadrilha de bandidos», como eram apelidados pelos governantes em Lisboa os contrabandistas, sobretudo os quadrazenhos, nos metesse a peste em Portugal, trazida de Espanha. Desse cordão fez parte o poeta Augusto Gil, no sector de Vale de Espinho. O congresso de médicos europeus reunidos em Dresden declarou inúteis e vexatórios os cordões das fronteiras. Provavelmente já sabiam como era transmitida essa peste.
A cólera repetiu-se em 1855 e 1856. Os médicos da altura, embora já mais evoluídos que na Idade Média, estavam longe de conhecer a origem e os meios de a atacar. Nem sequer ainda havia um Ministério da Saúde, quanto mais um SNS! Era o Ministro do Reino, o equivalente do Ministro do Interior hoje, quem tinha a seu cargo debelar a crise.
O povo atribuía estas doenças à ira divina ou a conspirações humanas. A medicação era tomar genebra e continuar com as sangrias. O resultado era nulo. O remédio veio com o abaixamento da temperatura no Outono de 1856. Neste ano morreram 2.997 pessoas.
Infelizmente, no Verão de 1857 surgiu nova peste – a febre amarela –, que dizimou muita gente, incluindo o rei D. Pedro V e sua esposa Dona Estefânia. Estima-se que morreram 250 pessoas por dia. Esta transmite-se por picada de mosquitos infectados, que se desenvolvem em charcos, coisa que então ignoravam.
Continuavam as sangrias, purgantes e sobriedade na mesa e na cama. O recurso ao divino-procissões e charlatanices eram os remédios. E quando Deus não atendia as preces, os padres eram os bodes expiatórios por não conseguirem a intercessão divina. O remédio veio da Natureza. Com a chegada dos frios de Inverno, que impediam o desenvolvimento dos mosquitos que lhe estavam na origem. Mesmo assim, realizou-se um «Te Deum» de acção de graças no Dia de Reis de 1858, porque o Divino tinha actuado.
Os governantes aprenderam a lição e passaram a cuidar da higiene das povoações, sobretudo de Lisboa, começando por canalizar a água e fazer esgotos.
A ciência veio a prevalecer sobre a charlatanice e a crendice. Só em 1937 um médico sul-africano descobriu a vacina para essa peste, o que lhe valeu o Prémio Nobel em 1951. A partir daí os governos começaram a ter mais em conta a ciência médica e desenvolveu-se a Medicina virológica e os meios de higiene foram prioritários.
Não foi, porém, a última peste. Em 1918, a chamada gripe espanhola matou milhões em todo o mundo. Novas gripes perigosas se seguiram, como a asiática de 1957/58, de que muitos nos lembramos e que matou também muita gente.
Hoje somos atacados anualmente por gripes que vão deixando um rasto de morte. Ciclicamente surgem novas gripes com efeitos mais nocivos e devastadores.
Felizmente a Medicina e a sua componente Virologia já está infinitamente mais preparada e consegue em prazo razoável descobrir vacinas e medicação que as destruam. Apesar disso, entre o aparecimento das gripes e o das vacinas, alguns milhares perdem a vida. Tem sido o caso do Coronavírus. Enquanto se avançam experiências para o conter e extinguir, todos os dias somos confrontados com mais uns milhares de mortos em todo o mundo. Portugal não é ainda dos mais atingidos mas já conta cerca de 1.000 mortos e uns milhares de infectados. Infectada está também a economia. Esperemos que não morra.
E agora, sim, voltámos aos cercos ou cercas sanitárias. Todos fechados em casa como em quarentena sem data e, em algumas cidades, como Ovar e Porto Moniz, há verdadeira cerca, pois ninguém pode entrar ou sair de lá. As autoridades sanitárias sabem que esta gripe se transmite por contacto respiratório com um infectado e há razão para estes cercos.
Muitas coisas deixámos de fazer, como conversar com amigos, almoçar em restaurantes, trabalhar nas empresas, viagens, ida a praias e divertimentos, como jogos de futebol e outros, idas a teatros e cinemas, frequentar ginásios e muitos actos de convívio e outros mais. Milhares de empregos se perderam e os consequentes salários. Deixámos de usar os carros. Os alunos deixaram de ir à escola. O medo instalou-se. A fome começa a atingir camadas que nunca sonharam vir a passar por ela e que não tiveram o bom senso de fazer alguma poupança, para muitos escusada porque a Previdência e o Estado teriam a obrigação de os sustentar. Ainda bem que muitos de nós seguimos o conselho dos nossos pais a incitar-nos à poupança, a «forrar», como nos diziam. Eles sabiam que esta poderia valer-nos em tempos de crise. Quantos bem empregados, com bons salários, seguiram este conselho? Quem lhes garantiu que manteriam ad eternum a vida de bons vivants que levavam? Bastou um bichinho para lhes acabar com esse tipo de vida. Espero que muitos aprendam a lição e deixem de pensar que os outros é que têm a obrigação de os manter por solidariedade! Onde tinham a cabeça os que se endividaram com prestações de bens não de primeira necessidade, comprando carros, frigoríficos, televisões caras, computadores, instrumentos musicais e máquinas variadas, muitas vezes apenas para fazerem ver aos amigos que eles tinham o que os amigos não tinham? Os bancos, que os incitaram ao consumismo, que paguem agora a factura, que eles deixaram de pagar! Infelizmente, parte da factura vem sempre recair em cima dos que não têm culpa nenhuma dessa falta de juízo! E os que não sabem tomar o pequeno almoço e outras refeições em casa, preferindo restaurantes, e os que gostam de passar fins-de-semana em bons hotéis?! Enfim, este vírus terá de os fazer pensar a mudar de vida para não terem de passar por outros maus bocados.
Quem nos diria que não haveria dinheiro para pagar salários, para pagar obrigações à banca, para pagar rendas de casa e para comprar remédios e comida?! É caso para lhes lembrar a fábula da cigarra e da formiga e do que esta respondeu àquela quando lhe veio bater à porta: «(No Verão) Cantaste, pois dança agora!»
Só a compaixão e os preceitos cristãos da caridade nos farão esquecer estes legítimos pensamentos de insensibilidade para com eles e ajudá-los a não passar fome, sobretudo aos filhos que não têm culpa dos actos estouvados dos pais.
Felizmente, graças à luz eléctrica, já não temos que nos deitar e levantar com as galinhas. A ela devemos também o uso da rádio, televisão, telefones e telemóveis, tablets e computadores, que nos amenizam o confinamento e nos ajudam a efectuar trabalhos à distância, impedindo a perda total de salários e fecho de empresas e até permitem o acompanhamento das aulas. Temos ainda livros, jornais e revistas, bons amigos para nos ajudarem a passar o tempo e nos informar sobre o que se passa no país e lá fora.
E, como a receita já não é moderação na mesa e na cama, veremos daqui a nove meses qual o efeito na variação da população e quantos mais subsídios teremos de pagar.
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«Lembrando o que é nosso», por Franklim Costa Braga
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