É «sem» ou «cem»? Como uma simples palavra altera por completo o significado da frase, ou do título, neste caso. Infelizmente é «cem». Na realidade, uma viagem sem destino, sem paragens, sem dias, sem horas e sem tempo. Neste caso é «sem» mesmo! É assim que tenho conseguido ultrapassar este longo percurso de confinamento em casa, subitamente um palácio que ao meu olhar até um pequeno bibelot, herdado da minha trisavó, que nunca reparei, é uma valiosa relíquia. Mas sem duvida que ler e escrever é a melhor companhia e terapêutica para vencer estes «cem» dias difíceis.

Só temos de ter paciência. Maldita paciência…
Finalmente um texto em ensaio. Um tempo passado em solidão (cem) mas desejando a liberdade (sem). A vida do palácio confunde-se com a matéria dos moveis, artefactos, livros, panos. Tudo parece fundir-se numa amálgama de cor sonante. Sentimos um chão a andar com o andar parado. Não se distingue a luz do sol da vela do castiçal.
Seguramente que é frustrante. Seguramente há quem morra desta cura porque não aguenta a pressão desta solidão. E a televisão? Bem, tem um prazo de «validade». A televisão é como ir à mesma loja e até sabemos os preços de cor. Sempre o mesmo. Imagem, som, côr, ideias, palavras, côr dos fatos de vestir, até os gráficos, valha-nos Deus!
O melhor caminho é mesmo imaginar um navio. Limita-mo-nos ao espaço que existe, às pessoas que estão a bordo. Um navio não é desejável um motim. Há vidas a bordo, responsabilidades, regras de segurança. Trabalha-se por «quartos» porque um dia tem 24 horas e cada turno oito. E forçosamente tem de existir um clima de entendimento na tripulação, clivagens desaparecem, conversas têm de ter elevação e respeito, cabeça a funcionar mesmo!
Para mim, um operacional do terreno desde jovem, é uma tormenta. E a terapia foi mesmo não pensar na chegada e quando voltaria a pisar a terra firme. Um dia de cada vez sabendo que o amanhã é igual a hoje, a ontem e anteontem. Nada de surpresas, nada de novidades, agradecer a comida no prato, a caneta e papel para escrever.
Na realidade a início entende-se. Confinamento para evitar a contaminação. Mas vendo as «borlas» noutros países, em alguns imprudentes no nosso Portugal, e a televisão a ajudar, raiva não falta e vontade de fugir é um impulso.
Mas a noção de navio regressa. Não se pode. O «mar» rodeia o palácio. É impossível. Temos de nos resignar e acalmar. Psicólogos e Psiquiatras, trabalho não lhes vai faltar!
Caímos na economia. Como vai ser sem se produzir tanto tempo? Claro, a espertice espreita. Empresas fecham. Funcionários dispensados. Negócios cancelados.
Mas também há mortes inesperadas, sofrimento imprevisto, risco elevado. Tudo se mistura, como em casa, levando-nos à entrada do desespero.
Mas na verdade a história vai ter um fim. E se a humanidade, numa era de inteligência, já cá anda há muitos anos, não será agora que vai acabar.
Só temos de ter paciência. Maldita paciência.
Covilhã, 12 de Abril de 2020
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«No trilho das minhas memórias», crónica de António José Alçada
Uau ! texto muito bem pensado e bastante reflexivo 👏👏🙏
Claro que não vai acabar. Somos inteligentes, somos fortes.
Muito giro. Bem pensada a analogía com o navio
Bjs
Bom texto uma agradavel leitura