Anos 60, Colégio do Sabugal, 4.º Ano (agora 8.º, como é sabido), Redação (presentemente Composição), de tema livre. Professor da Disciplina de Português, um dos poucos professores, de então, ainda entre nós e grande cultor da língua, mormente em sede de etimologia, mesmo na Homília das Eucarístias dos Encontros dos Antigos Alunos, sempre que vai e, naturalmente, preside às mesmas. Se o tema é livre, tanto melhor, pensámos então…

Estávamos lá para isso e, sem mais, vamos ao título e continuemos, procurando reproduzir o que na altura escrevemos e que, à falta do velho Caderno Diário, com as Redações incluídas, será apenas o que conseguimos reter de memória, decorridos 54 ou 55 anos. Assim, teremos:
Latus – o Latino sem Latim
Godiva, aluna dentro da normalidade nas demais disciplinas, era a «Lanterna Vermelha» em Latim.
Latus, assim se chamava um professor dessa disciplina, era apelidado de «Latino» pelos alunos, entre si, devido ao seu rigor no ensino da matéria e à razia que imprimia na classificação, nas provas orais, já que nas provas escritas valia o que cada aluno sabia e ali expressava.
Godiva, apesar da falta de queda para o Latim, a última da turma nessa cadeira e daí o epíteto de «Lanterna Vermelha», apesar da falta de queda, teve a sorte de conseguir ir à oral.
Faltava o pior, o principal, pois a seguir à oral (a não ser que se tenha dispensado da mesma) é que se passa ou se reprova.
E quem veio a calhar a Godiva, para a prova oral?
Precisamente o Latus, que não fora o seu professor na disciplina e, por isso, podia avaliá-la em exame.
Sucede que o «Latino», passemos a chamar-lhe assim, o rigor que imprimia no ensino e na avaliação da disciplina, também se verificava no que dizia respeito às orais, em que não admitia «cunhas» e, quando alguém intentasse metê-las, era de esperar pelo resultado.
Tendo essa faceta chegado ao conhecimento da Godiva, esta preparou, o melhor que pôde, uma determinada parte da matéria, por exemplo as declinações e incumbiu a mãe de pedido ao «Latino», para que não a interrogasse sobre essa matéria, que não sabia nem sabia como a estudar.
O «Latino» cai na esparrela.
Depois de umas questões muito simples, a que qualquer aluno responderia facilmente, rematou com o seguinte: «Diga-me agora, para poder passar no seu exame, o que sabe sobre declinações?»
Temos que a jovem Godiva, «Lanterna Vermelha» na disciplina, como acima referido, passou a expor com tal conhecimento e fluidez de raciocínio, que mais parecia a «ursa do curso» e passou na oral.
Não sabemos o que terá passado pela mente do «Latino» que «ficou sem latim» para poder dizer o que lhe iria na alma, mas isso já não vem ao caso.

Professor de Português não acreditou na autoria da Redação
Esta a Redação que apresentámos ao Ilustre Professor de Português e que não a classificou, com a alegação de se tratar de um texto que não poderia ser da nossa lavra.
Claro que era da nossa lavra, mas como o Professor, então, tinha sempre razão, tivemos que «aceitar» o «magíster dixit».
Para o caso daquele magno Professor poder vir a tomar conhecimento dos «Ecos» aqui trazidos, decorrido tão lato lapso de tempo, entendemos que, por mera cautela e ainda que muito sucintamente, deveremos apresentar alguns subsídios da razão de ciência para a elaboração e apresentação, então, da dita Redação:
1.º – Havíamos tomado conhecimento de uma situação, semelhante à apresentada, relativamente a uma aluna do Colégio, na disciplina de História, cuja mãe, a seu mando, fora pedir ao Professor. Temos, porém, que, nesse caso, a aluna não sabia efetivamente a matéria, não a preparou e confiava na benevolência do Professor. Acabou por sair prejudicada. Conhecedor daquele desfecho, eu não iria correr esse risco no caso da «minha» Godiva, em Latim. Nem a Redação ficaria tão interessante, pois quedaria monótona, um pouco insipiente e sem a picardia imanente à rebeldia de uma jovem como a Godiva;
2.º – Pelo Cinema do saudoso Sr. Pires correra, muito recentemente, entre outros, o filme «Lady Godiva», uma comédia romântica. Para uma disciplina de Latim, em que também havia um Professor de nome latino e que iria ficar «sem latim», o nome para a aluna, melhor que Maria, Conceição ou Fernanda (sem qualquer desprimor para estes nomes) poderia ser arrancado dum filme e, daí, o sugestivo Godiva;
3.º – Diga-se, ainda, em abono de causa, que o comportamento da Godiva da Redação, que leva o Latino a passá-la no exame, cumprindo a palavra de a passar, caso ela respondesse acertadamente à questão que lhe colocara, está em consonância com a ousadia da Godiva do filme, ao cavalgar nua pelas ruas de Coventry, para que seu marido, Leofrico, Lorde Saxão, retirasse ao povo os pesados impostos, que ele lhe estabelecera, o que também veio a verificar-se, em cumprimento da promessa, que ele lhe fizera, de os retirar. Se no concernente a Lady Godiva, estamos perante o que diz a lenda, não parece razoável que o Professor de Português do Colégio do Sabugal deixasse de classificar a Redação, por não a considerar de conteúdo de plausível veracidade ou por entender que um aluno, da classe baixa, da Beira Serra (agora Beira Interior) jamais poderia engendrar uma estória daquelas e apresentar-lha em Redação.
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«Ecos», crónica de Isidro Candeias
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